terça-feira, 20 de janeiro de 2015

“O CARRO É O CIGARRO DO FUTURO, ARQUITECTURA NÃO É DESFILE DE MODA”


Entrevista com JAIME LERNER
 
Por: C. Martinho 
Nesta missão de ouvir as diversas vozes da arquitectura,  tivemos a oportunidade de estar do outro lado do oceano e conversamos com o renomado arquitecto e urbanista Jaime Lerner no seu atelier em Curitiba, a cidade capital do Estado de Paraná, Brasil. Jaime, como gosta de ser tratado, dispensa apresentação, a sua obra inovadora de 50 anos de carreira é conhecida pelo mundo todo, está exposta no museu Oscar Niemeyer em Curitiba, a cidade que o viu nascer e que mudou a face, transformando-a com marcas indeléveis temperadas com simplicidade.
Nesta conversa "informal" com algum humor, o pensador do sistema de transportes público integrados e outros sistemas urbanos inovadores, fala de forma crítica e descontraída sobre a cidade, a arquitectura, as acupuncturas e mobilidade urbana, e apresenta a sua visão sobre Angola. O nosso entrevistado fala da sua experiência no seu escritório (JLAA) que desenvolve vários projectos no Brasil e pelo mundo incluindo Angola;

Pelo reconhecimento da sua rica obra, Jaime Lerner recebeu diversos prémios internacionais com destaque para o prémio máximo das Nações Unidas para o meio ambiente (1990), UNICEF Criança e Paz (1996), o 2001 World Tecnology Award for transportation, o 2002 Sr. Robert Mathew Prize for Imploiment of Quality of Human, pela União Internacional de Arquitectos. Em 2010 foi nomeado pela revista Time um dos 25 pensadores mais influentes do mundo, e em 2011 em reconhecimento à sua liderança e contribuição no campo da mobilidade urbana sustentável, recebeu o prémio Leadership in Transport Award, pela Internacional Transport Forum at the OECD (www.jaimelerner.com);

     Jardim botânico de Curitiba
A cidade de Curitiba hoje é o que sonhou/idealizou?
Bom, muita coisa aconteceu, Curitiba sempre teve um compromisso de inovação constante, como tudo que é inovação deve continuar, quando você para uma inovação, aí as coisas começam a decair um pouco. Então eu acho que Curitiba ainda é uma cidade como referência no mundo inteiro, eu não gosto usar a palavra "exemplo", Curitiba é ainda uma referência mas algumas coisas têm decaído, a falta deste processo de inovação constante está interferindo, começando a preocupar; Curitiba sempre esteve na vanguarda, então é necessário muito trabalho para manter esta vanguarda, e agora desde alguns anos ela (a cidade) parou de inovar. É claro que Curitiba ainda tem coisas de alta qualidade, como serviços, a cidade tem compromisso constante com sustentabilidade, mas muitas coisas decaíram, como a qualidade dos transportes públicos, a sensibilidade em relação àquilo que é uma cidade, essa sensibilidade está se perdendo;
Curitiba é conhecida por ter um bom sistema de transportes públicos, pode dar um exemplo concreto que ilustra como esta sensibilidade decaiu?
Vou dar um exemplo. O transporte público de Curitiba, tinha um sistema de altíssima qualidade, onde o embarque era rápido com pista exclusiva e a frequência era de minuto à minuto, porque os ônibus (autocarros) biarticulados tinham preferência/prioridade no semáforo, eles paravam só nas estações, e de uma hora para outra isso deixou de acontecer, de uma frequência que era de um minuto, passou a parar de quatro em quatro…. e isto vai reduzindo a confiança que a população tem na qualidade do transporte, ainda é boa mas muita gente voltou para o automóvel. E no desenho do espaço urbano, dou um simples exemplo de piso da pedra portuguesa que é uma tradição que funciona há mais de trezentos anos em muitas cidades e que era uma marca de Curitiba. Em muitas cidades Brasileiras agora a pedra portuguesa foi "excomungada", substituída por um pavimento ridículo em "paver", e a pedra portuguesa era um tapete, tinha um desenho e toda vez que havia necessidade de repor infra-estrutura a pedra portuguesa se recompõe mais facilmente; Eu dei um exemplo disso mas ela era importante no desenho da cidade, das vias estruturais e assim vão todas tentativas de revitalização.
O centro da cidade precisa ser ocupado, o que acontece hoje no centro de dia é muito bom por um lado, e durante anos nós estimulamos a vinda de cursos, de faculdades todas no centro para trazer   mais vida, trazer mais jovens e equipamento cultural ao centro da cidade, e agora não há esse cuidado. Eu acho que revitalizar é voltar a viver, então as pessoas não vão viver no centro se o centro não tem uma boa vida de rua, uma boa qualidade. Bom, ainda assim é a melhor área pedestre do País mas podia ser uma área com maior qualidade;


  "Eu acho que revitalizar é voltar a viver"
 
O sistema de transporte de Curitiba é referência no mundo, está a ser experimentado em 300 cidades, como mostra a sua exposição actual no museu Oscar Niemeyer. Como avalia este olhar para a referência que é Curitiba e a implementação noutras cidades?
Eu conheço uma boa parte das cidades que implementaram o BRT (Bus Rapid Transit), muitas fizeram um bom trabalho, outras não. De qualquer maneira elas definem uma prioridade para o transporte público, mas existem vários estágios de boa qualidade de transportes. Por exemplo, a cidade de São Paulo está fazendo faixas exclusivas, mas a faixa exclusiva não é tudo, tem vários estágios, a faixa exclusiva junto a calçada é um desastre, precisa ser no meio da via, mas de qualquer maneira isto revela uma prioridade do transporte público. Então as administrações mostram esses exemplos, como agora os autocarros andam mais depressa, claro que é, mas poderiam ter muito mais qualidade. Então primeiro o transporte não precisa apenas de um corredor, é uma rede integrada isso implica no desenho das estações e tudo, como desenhar as estações para poder caracterizar como uma rede;
Acabei de saber que já esteve em Angola, olhando para Luanda que avaliação faz da cidade? ….
Cada vez que vou à Luanda vejo que a cidade está melhor, porque as primeiras vezes que fui havia muita obra, muito congestionamento, para circular um quilómetro levava três horas, mas cada momento a gente vê um avanço, Luanda tem frente para o mar e isto dá para fazer muita coisa boa, a cidade está melhorando na qualidade dos serviços, mesmo na circulação está melhorando, então a tendência é esta, a população vai começando a exigir cada vez mais e é bom que faça isso;
Sabe que o BRT já está a ser implementado em Luanda?
 É? Quem fez isso?
Os planos Integrados de Expansão Urbana e Infra-estruturas de Luanda aprovados por um Decreto Presidencial em 2011 previam o BRT, o que veio a ser retomado pelo Plano Director de Viana que tem a vossa consultoria. O Ministério da Construção em articulação com o Ministério dos Transportes estão a liderar este processo, e já há obras. O que acha da implementação deste sistema numa cidade como Luanda, com uma população enorme e um fluxo migratório intenso?
É importante que sempre o transporte público seja pensado junto com planeamento da cidade, a estrutura de vida, lazer, mobilidade tudo junto, mas não é só corredor (faixa exclusiva), não é uma coisa isolada, me lembro de receber a visita de um prefeito de São Paulo há um tempo atrás e ele me disse: "porquê que os vossos corredores de transporte são limpos não são grafitados, tem moradias boas ao longo do corredor?", eu lhe disse que para nós não são" corredores", eles são parte de uma estrutura de vida, mas é mobilidade tudo junto, são as coisas, tem gente, não é uma coisa isolada, então deve haver este cuidado. Outra coisa, este tipo de "community  sistems" quando você só usa duas vezes ao dia, é difícil viabilizar, pois que a estrutura tem que ter tudo junto para ficar se realimentando, e a moradia tem que estar ao lado. Mas isto são coisas/conquistas que vão acontecendo aos poucos, eu vejo com muito optimismo o futuro de Angola, devido a vossa capacidade;
Essa coisa das acupuncturas urbanas fala-se em todo mundo, qual é a ideia? ….
A ideia é a seguinte: às vezes a gente espera muito tempo para fazer planeamento e tudo mais, mas tem ideias focais que podem começar imediatamente e terminar em dois ou três meses, que podem criar uma nova energia, é o mesmo princípio da acupunctura. Então, é claro que esta energia ajuda no processo de planeamento, não é no lugar do planeamento (substituir) é para ajudar, e às vezes ele é importante porque a gente pode fazer um efeito de demonstração rápida através de uma acupunctura mostrar e a população saber o que se quer, então às vezes é uma linha de transportes no começo que pode ser esta demonstração, mas tudo isso tem que ser feito rápido;
E a questão do carro, apercebi-me de que compara-o ao cigarro…quer comentar?
É, porque quando a gente falava, há muitos anos atrás que um dia iam abolir o cigarro dos espaços fechados, ninguém acreditava, diziam que não era possível e hoje o mundo inteiro proíbe. Então eu digo que o carro é o cigarro do futuro porque nós não podemos depender só do carro, não pode ser a única alternativa, a gente pode ter o carro para fumar, viajar ou para o lazer, mas para o dia-a-dia na cidade a solução tem que ser o transporte público, para atender a grande maioria da população;
Que dizer do shopping, parece que não gosta muito….
A questão do shopping é a seguinte: quando é dentro da malha urbana, ele ajuda a trazer movimento, quando é fora da malha urbana ele vai contra a cidade, então te afasta da cidade, e é uma maneira também de elitizar, de tornar inacessível à população de renda menor. O shopping dentro da cidade é muito bom, temos aqui em Curitiba muitos bons exemplos que resultaram da reciclagem de fábricas, então esses são favores da cidade, embora nós tínhamos uma lei antes, que proibia que o shopping devia ter um lado para a rua, não deveria ser uma caixa fechada, aqui a gente fez varias tentativas, não permitiram de dar um carácter de rua para o shopping, ter uma frente para a rua, eu espero que isso aconteça. Me lembro que os que faziam shopping não queriam saber de cinema, era só vender, e a gente sempre colocava a necessidade do cinema e hoje o que faz a vida do shopping é o cinema, então essas coisas separadas/afastadas da cidade não são a cidade;
É mais conhecido como urbanista, sei que aqui no Brasil os cursos são de arquitectura e urbanismo junto, mas o senhor é mais visto como alguém que trabalha em urbanismo, ou "arquitecto da cidade"….
Nós fazemos arquitectura e design tudo junto, isso faz parte da nossa formação, muitos lugares da europa têm o urbanista que parece o médico que não pode ver sangue, dizem que o psiquiatra é um médico que não pode ver sangue, tem medo de ver sangue. O urbanismo é espaço para o bom arquitecto, para o bom economista, o bom profissional, ele não é uma exclusividade dos demais, por isso ela não pode ser uma coisa separada. Eu sei que alguns países essencialmente na Europa na têm essa formação, mas eu gosto mais da nossa formação aqui que é tudo misturado, a gente é meio designer, meio paisagista, meio arquitecto….
Mas assim o arquitecto não se torna um generalista?
Eu não, porque a gente tem que ter uma visão global das coisas, ao mesmo tempo tem que ser muito bom e o detalhe é importante. Então, havia um arquitecto que trabalhávamos juntos, e muita gente dizia " não, mas lá em cima no terraço, ninguém vê…" e ele dizia " mas Deus está vendo".
Para nós que não vivemos cá, quando se fala em arquitectura no Brasil pensa-se em Oscar Niemeyer, que tem a dizer sobre ele?
 
Para mim foi o grande génio, é o primeiro grande exemplo pela capacidade de fazer coisas simples, porque toda vida dele (104 anos) fez isso. Uma das razões porque eu fiz arquitectura foi porque  via os projectos de Oscar Niemeyer, e ele inspirava todos nós, e tive a felicidade de conviver com ele;
 
Esta influência que Oscar tem nas obras de arquitectura é relevante, Jaime Lerner é referência do urbanismo, mas o senhor também tem intervenção em edifícios emblemáticos cá em Curitiba….
O arquitecto faz tudo. Uma das coisas que a gente gosta, é que ao mesmo tempo a gente desenha carros, ao mesmo tempo trabalha em transportes, no plano de uma cidade, estamos trabalhando em Angola…eu acho que a variedade de projectos e de desafios grandes que temos é que faz de nós o que somos, que todo mundo gosta.
   
         Escritório do Arq. Jaime Lerner em Curitiba, projectado por ele próprio
 
E essa sua ideia que é inspiradora, de trabalhar em equipa?  
Eu não sei trabalhar sozinho. Até porque eu acho que a criatividade vem de um processo de imersão. Ás vezes aqui (no escritório) um começa com uma ideia, mas é bom que o outro pegue corrija e faça melhor e o outro faça melhor, ninguém é dono de uma ideia, e é isso que faz essa coisa, claro que tem "coordenadores"  de projectos mas em geral um influencia o outro, um corrige o outro;  
"Eu não sei trabalhar sozinho"

Reflecte-se hoje  na ideia da Arquitectura social. Há certa altura a arquitectura passou a ser uma coisa de elite, o que acha? 
 Eu fui presidente da união internacional dos arquitectos, "tínhamos um milhão e meio de arquitectos e um milhão e meio de egos", então eu dizia sempre que a gente tinha muito orgulho dos nossos "stars" arquitectos, mas nós precisamos de uma constelação de arquitectos que se preocupam com a cidade, menos EGOarquitectura e mais ECOarquitectura, há grandes arquitectos que se preocupam com o entorno (envolvente), tem outros que não querem saber do entorno, eles querem um deserto para a obra deles aparecer, e uma das coisas fantásticas da obra de Niemeyer é que elas eram sempre simples, não é essa arquitectura toda retorcida, pego num pedaço  de papel amasso….acho que tem coisas boas, mas eu digo que o computador ajudou muito a fazer as coisas boas e coisas muito, muito ruins, o que eu chamo de "arquitectura torcida", vê-se muito, principalmente no oriente médio, China também, porque não têm compromisso com a cidade, com a sociedade...arquitectura não é desfile de modas, em tempos fiz uma brincadeira com Projectos famosos vestidos por mulheres, apresentei num debate sobre museus, foi muito engraçado. 

"Tínhamos um milhão e meio de arquitectos e um milhão e meio de egos"

" Precisamos menos EGOarquitectura e mais ECOarquitectura"

  E a beleza na arquitectura,  boa arquitectura é necessariamente encantadora ou espetacular?
 Ela não precisa ser espetacular. Para mim sempre é simples, mas ela tem que ter aquela surpresa e a simplicidade é a coisa mais difícil que há. Um escritor que mandou para o outro uma carta e disse : " eu te mandei uma carta muito comprida porque não tive tempo de fazer uma carta curta", porque coisa simples é concisa. Eu gosto muito de trabalhar com os artistas, com filósofos, poetas, eles não precisam ser de profissão, são por natureza, porquê? Porque o artista tem uma pele mais fina, ele sente a sociedade antes. Se eu posso trabalhar com gente que sente a sociedade antes, porquê que vou trabalhar com gente que sente a sociedade depois.
    "Simplicidade é a coisa mais difícil que há"


A propósito, há uma conversa  interessante que tem estado a mexer com as pessoas, especialmente os arquitectos que tem a ver com "arquitectura sem arquitectos", ou seja, as pessoas nas comunidades rurais organizam o seu espaço, a sua forma de viver mesmo sem serem profissionais, considera isso também arquitectura?
   
Também é arquitectura. Pegue uma Vila de pescadores em algum lugar da Europa e verá que são mais bonitas que muitos projectos, é porque tem uma noção de espaço, de necessidade, isto vem sedimentando com o tempo, e os materiais quando bem usados, têm uma razão de uso e têm um forte vínculo com o local/lugar, eles acabam definindo uma boa arquitectura.
E sobre identidade e beleza na arquitectura, o que acha?
A identidade é a componente fundamental, se perdermos a nossa identidade não somos nada. A beleza vem de tudo junto;
 
  
 
 
 
 
 
 


Sem comentários:

Enviar um comentário