quinta-feira, 3 de agosto de 2017

CONVERSA COM O ARQº. HÉLDER JOSÉ (parte1)

"O ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO É CIÊNCIA”

    Arqº. Hélder José 

Nesta primeira parte da extensa conversa, bastante descontraída que mantivemos  com o Dr. Hélder José, debruçamo-nos sobre a sua experiência profissional no Instituto de Planeamento e Gestão Urbana de Luanda(IPGUL), daquilo que considera as “quatro dimensões” da Arquitectura para a nossa realidade e por fim revelações sobre os vários “caminhos” percorridos para  a elaboração do Plano Geral Metropolitano de Luanda, desde a sua gêneses.

Dada a pertinência da matéria, sua extensão e para não cansar os nossos leitores, apresentamos a entrevista em partes e por tópicos, o que esperamos venha ajudar a compressão da profundidade dos assuntos abordados.

Por: C. Martinho

 EXPERIÊNCIAS NO LABORATÓRIO IPGUL
A figura de Hélder José está muito associada ao IPGUL, onde esteve durante vários anos, que é uma Instituição que marca Luanda pelos estudos e instrumentos de Ordenamento do Território sobre Luanda, em que esteve envolvido. Agora que já não dirige este Instituto o que lhe ocorre à mente em relação a sua passagem por esta estrutura do Governo Provincial de Luanda?

Primeiro, considero que foi uma experiência positiva. Estar no IPGUL ajudou-me a tornar realidade um desejo transmitido pelo meu tutor do doutoramento, o Sr. Salvatore Dierna já nos finais do curso de doutoramento, em que ele dizia e cito: “quando terminarem e onde vocês forem, lembrem-se que são agentes do conhecimento e da formação, então vão e ensinem!”. Eu tentei fazer isto no IPGUL, já que era difícil realizar um exercício do género na Universidade, uma vez que infelizmente o nosso sistema académico tem algumas insuficiências. As condições que tive me permitiram ver a possibilidade de usar o Instituto como um laboratório ou seja, um bom veículo de conhecimentos ligados à questão do Ordenamento do Território. Um dos primeiros exercícios que realizei foi algo que sempre sonhei; - o de criar um Gabinete que pudesse lidar com variáveis do Território, o que requereria ferramentas capazes de poder manusear e utilizar tais variáveis. 
Pelo facto de ter apreendido durante a minha formação académica, no doutoramento, que o uso de tecnologias de informação ajudava muito a tornar possível esta visão, então passei para a fase da sua constituição, através da criação do Gabinete de Informação Territorial. Lembro-me que parte do meu trabalho de doutoramento visava a criação de um sistema informático que pudesse ser um apoio à selecção de tecnologias apropriadas à utilização, com sustentabilidade da Tecnologia da Madeira integrando as espécies mais acertadas no domínio da construção sem que a fonte, as florestas, sofressem impactes ambientais descontroláveis, sendo que a metodologia idealizada poder-se-ia, assim, aplicar em países com dificuldades tecnológicas, fundamentalmente nos Países Africanos que sendo produtores deste recurso, para o consumo acabam recorrendo à importação do produto acabado. Por isso, depois, desta reflexão, acabei criando um Gabinete de Informação Territorial usando as ferramentas do Sistema de Informação Geográfica (SIG). Isto foi para mim o expoente maior do que realizei no Instituto de Planeamento e Gestão Urbana de Luanda (IPGUL). Pois, não faz sentido a quem lide com o território não conheça e não utilize o Sistema de Informação Geográfica (SIG) para gerir o território. Por isso reputo de grande importância a utilização desta ferramenta tecnológica. 

Então entende que o SIG é fundamental a gestão territorial?

É fundamental com todas as derivações e o potencial que o Sistema de Informação Territorial (SIG) permite. Este foi para mim o corolário de eu consegui colocar, por via do conhecimento académico apreendido, numa instituição pública que passaria a empregar o uso desta tecnologia para o bem colectivo das comunidades. O outro exercício foi a tentativa de fazer com que os fazedores do Ordenamento do Território pudessem constituir regras que lhes permitissem trabalhar o dia-à-dia de forma estruturada, porque não dá mais para trabalhar na base do empirismo. Deste modo, lembro-me de ter produzido o manual que contem um Regulamento de Análise de Projectos para Licenciamento e ainda a Revista IPGUL. Quanto a Revista eu exigi que a mesma não fosse do Arq. Hélder, ou seja com culto de personalidade, mas nossa (do Instituto), por isso ela teria que ser impessoal. Nessa altura eu já dizia que o - próximo Director que me substituir, pelo facto da Revista ser impessoal poderá oferecer a quem o procurasse tal Revista, exactamente, pela razão que expliquei anteriormente. Claro que para mim isso seria um grande conforto, que muito embora a Revista tivesse sido feita e idealizada por mim, mas estaria a contribuir para a passagem de um conjunto de informações muito importantes para quem a lesse. 

A última edição que falava sobre “cidades inteligentes” com textos do Arq. Miguel Amado e outros profissionais conceituados, não aparece nenhum artigo assinado pelo Arq. Hélder José... 

Eu fiz de propósito, e disse, na próxima edição “vamos tocar na temática de cidades sustentáveis.” Se reparar os primeiros a fazer esta abordagem em Angola fomos nós no IPGUL, mais tarde outros começaram a falar sobre o mesmo  tema. Aliás, em relação ao Sistema de Informação Geográfica (SIG) o cenário foi igual, ou seja, foi o IPGUL que impulsionou o seu uso efectivo, tanto que os jovens que consegui mobilizar da Faculdade de Ciências e que executaram o mecanismo me segredavam  nunca pensarem que teriam tanta utilidade como passaram a ter, após terem desenvolvido na prática os seus conhecimentos científicos, assim, eu passei a ser mais conhecido na Faculdade de Ciências no Departamento de Engenharia Geográfica que no próprio Departamento de Arquitectura da Faculdade de Engenharia. Tanto que das vezes que fosse à Faculdade de Ciências muitos jovens me abordavam porque queriam que os admitisse no Quadro Técnico do IPGUL como técnicos do Gabinete do SIG.
    Última edição da revista IPGUL

AS QUATRO DIMENSÕES DA ARQUITECTURA 

Isto também é um pouco apelo à necessidade do arquitecto alargar  os seus horizontes, pois não?

Sim, o arquitecto tem mesmo que ter esta visão, principalmente nós aqui em Angola, precisamos de facto ter uma visão muito ampla dos problemas sobre a organização do território e não restringir única e exclusivamente à arquitectura. À propósito deste argumento que me colocas veio-me em mente o debate  em que participei muito recentemente e que o denominaram “O café do arquitecto” organizado pelo Kahina Ferreira. Na verdade a essência do debate era o de colocar gerações diferentes de arquitectos a interagirem na transmissão de conhecimentos e experiências sobre a temática da arquitectura, por isso foi colocado no painel de debate duas gerações; a minha e a geração mais nova com essa finalidade. Uma das coisas que eu dizia ao pessoal presente era o seguinte: “ Nós temos que ter a capacidade de observar a arquitectura em quatro dimensões:  A primeira é a Dimensão Humana, porque a arquitectura é feita de pessoas para as pessoas;” A meu ver colocar, a arquitectura na sua essência física sem perceber que ela é para as pessoas acaba sendo um exercício inglório; a arquitectura tem que ser vista sempre na sua perspectiva humana, porque no final são as pessoas que vão habitar este espaço físico.
A segunda é a Dimensão Ambiental, porque é preciso compreender em que contexto ambiental a estrutura física que irá albergar a vivência humana seja constituído como um local agradável e confortável respeitando o ambiente, uma vez que o objectivo último da arquitectura é fazer com que a pessoa que habite um determinado espaço se sinta bem. 
A terceira era a Dimensão Económica, porque nós temos aquela de que “a arquitectura tem que custar caro. ” Não! A arquitectura pode custar caro, mas, nunca nos esqueçamos que a grande maioria da população não tem recursos para suportar custos elevados de uma arquitectura dispendiosa, no entanto o arquitecto deve ser um excelente agente social; por isso aqui enquadro o quarto aspecto, ou seja, a quarta Dimensão, que é a dimensão social da arquitectura. Se nós não percebermos a arquitectura nestas quatro dimensões cometemos erros muito graves. 

Mas estas quatro dimensões que menciona confundem-se com os pilares da sustentabilidade, não?

Bem, isto é já da minha “lavra” (risos). Uma pessoa lê tanto que depois tem que fazer interpretações sobre aquilo que lê.
Temos que perceber que, na nossa realidade, estas quatro dimensões são aquelas que entendo que devem ser encaradas com muita profundidade e objectividade. Por outro lado, nós os arquitectos angolanos queremos trabalhar de forma muito individual, ao invés de pensar em parcerias estratégicas que nos conduziriam a um pensamento com perspectiva colectiva. Deste modo, acabamos esbarrando nas dificuldades de um mundo cada vez mais competitivo onde as coisas são feitas sempre de forma mais integrada e colectiva, por isso depois reclamamos muito à falta de espaço! Mas espaço se conquista com luta, mas muita luta mesmo, claro! Luta no bom sentido, não pancadaria (risos). Daí agradecer este vosso gesto de criar este espaço virtual de interacção e partilha de informação. 

Mas voltando novamente na Dimensão Social da arquitectura tem vezes que achamos e pensamos que só as coisas grandes e monumentais são capazes de transmitir arquitectura e que por isso têm que ser muito caras, mas, existem tantas e tantas pequenas coisas feitas que são tão belas! O que quero transmitir é que temos um manancial de riqueza de coisas pequenas à nossa volta, quer na nossa realidade angolana como na africana que se devidamente estudadas e exploradas na sua essência arquitetônica seriam capazes de produzir grande arquitectura, isso ocorreu-me agora, porque lembro-me de um livro que li de um economista Alemão intitulado “The small is beautiful” (o pequeno é bonito) onde faz ele uma incursão profunda a estes aspectos que foquei agora; Isso sim! É que é falar de sustentabilidade. Nós temos coisas tão pequenas que se fizéssemos bem conseguiríamos extrair a beleza que estas encerram o que faria as pessoas olharem e dizer: “uhau!” Afinal podemos!

BASTIDORES E CONTORNOS  DO PDGML 

Mas quando falávamos do que lhe marcou no IPGUL para além do que mencionou, há a questão da produção de instrumentos de ordenamento do território, incluídos planos. A história de Luanda, desde a época colonial até aos nossos dias, está cheia de instrumentos elaborados, uns executados sem aprovação, outros aprovados sem serem implementados. Qual é a apreciação que faz sobre o assunto?

Eu participei praticamente na gênesis do último instrumento que é o Plano Director Geral Metropolitano de Luanda - PDGML. E o mais estranho é que a maior parte de nós, sozinho, quer ser a solução definitiva dos problemas graves do ordenamento do território de Luanda, se eventualmente não tiveram envolvimento directo então desconsideram o trabalho realizado. O que digo se confirma porque um destes dias sou abordado por alguém que sabia do meu grande envolvimento nos trabalhos dos PDGML só para me segredar que: “mas, Hélder, aquilo está mal feito!”, como sempre, o pessoal do “bota-abaixo” diz sempre que “está mal feito”, isto porque, todos nós queremos ser partícipes, no entanto e acrescento, na verdade, acabamos sendo, directa ou indirectamente, participes na execução de instrumentos desta natureza. Ou seja, dito doutra maneira, achas possível convidar todos habitantes do País e discutir o Plano para Luanda e obter concordância? Isto é impossível! Seria um perfeito exercício de demagogia, não se faz comício utilizando o Ordenamento do Território como lema e ou ferramenta de trabalho. Pois o resultado seria nulo. Como digo e reafirmo - O Ordenamento do Território é ciência (embora muitos pensam que não seja), sendo ciência precisa de especialistas para montarem as ferramentas e produzirem a arquitectura instrumental que seja capaz de ser intendida por todos que vivenciam o território. Portanto, se não tivermos esta visão corremos sempre o risco de continuarmos a fazer as coisas como a manta de retalhos que temos feito para às varias cidades do país nos últimos tempos...
    Excerto da planta do uso de solos do PDGML

As várias “Luandas” como dizia um arquitecto......

Não estou a falar de Luanda, estou a falar do País. Então, lembro-me, que quando começamos o PDGML... mas retornando um pouco para trás, em 2001 quando entrei para o Governo Provincial de Luanda, tinha sido convidado a trabalhar em alguns encontros do Grupo Técnico de Reflexão (GTR) cujo propósito da sua constituição era o de encontrar às soluções definitivas e duradouras para o Ordenamento do Território em Luanda. O GTR era então, dirigido pelo Engº. Diekumpuna Sita José. Para além de um complexo trabalho sobre as dinâmicas inerentes às transformações territoriais recomendadas, este Grupo Técnico, acabou por ser o responsável pela produção da legislação sobre o Ordenamento do Território que veio a vigorar mais tarde, assim como, da Lei de Terras. No fundo, aconteceu em minha opinião, que o objectivo político que lhe foi transmitido sofreu um certo desvio, portanto, não tendo chegado a um verdadeiro instrumento com peças que pudessem ser utilizadas para corrigir as tendências pesadas que estava a sofrer o território de Luanda, este Grupo Técnico acabou por produzir legislação sobre o ordenamento do território que entretanto, valeu a pena à sua realização, contudo, aquilo que tinha sido a orientação “política” que lhes tinha sido baixada que era fazer um instrumento de ordenamento para Luanda acabou não tendo sido o suficientemente convincente ao que a função deste Grupo dissolveu-se mais tarde. Depois foi criada uma Comissão de Desenvolvimento Urbano, no início novamente dirigida pelo Eng.º  Diekumpuna Sita José que acabou estabelecendo o mesmo sentido metodológico estabelecido no Grupo Técnico de Reflexão, acabou não acontecendo nada, assim é substituído o Eng.º Diekumpuna Sita José pelo então Ministro da Administração do Território o Sr. Virgílio de Fontes Pereira. Entretanto, esta substituição não produziu os resultados políticos esperados tendo sido a Comissão extinta. O problema é que as pessoas à quem tinham sido dada a incumbência pensavam que elas é que tinham que elaborar o Plano, mas o Plano Director, sejamos modestos, pela complexidade dos problemas de ordenamento do território que vivemos não teríamos e nem temos capacidade de o fazer. Não vale a pena nos armarmos em “chico espertos”. 

Eis que surge um dispositivo presidencial que orienta que era necessário fazer o “Masterplan de Luanda,” por via de uma Comissão específica liderada pela então Governadora Francisca do Espírito Santo. Nesta altura eu já estava na direcção do Instituto de Planeamento e Gestão Urbana de Luanda (IPGUL). Das consultas por ela feita ao órgão técnico de qual seria a melhor estratégia aventou-se a possibilidade de ser responsabilidade do IPGUL à sua elaboração, com sinceridade e devido a complexidade em realizar um instrumento tão complexo e difícil eu disse à então Governadora de Luanda em nome do IPGUL: “Mas, eu não sei fazer Plano Director!”, nem sequer havia capacidade e tecnologia instalada na estrutura que permitisse produzir um trabalho com a seriedade que se pedia. A Governadora perguntou-me se não tinha ido estudar Ordenamento do Território ao que respondi: “Sim, muito embora tenha ido estudar ordenamento do território, mas daí a fazer o Plano Director para Luanda a distância era longuíssima”, já que elaborar um Plano Director requereria uma capacidade e tecnologia tão elevadas, principalmente ao se pretender fazer um instrumento que resultasse num Plano que deveria resolver os problemas do ordenamento do território de Luanda. Então, e pela experiência das Comissões anteriores nomeadamente Grupo Técnico de Reflexão (GTR) e Comissão de Desenvolvimento Urbano que não tinham conseguido realizar o desiderato político, pressupus que os erros destes não deviam voltar a  acontecer com a Comissão que tinha sido incumbida de fazer o “Masterplan” tendo sugerido à Sra. Governadora que deveríamos percorrer uma outra estratégia e que passaria em primeiro lugar pela elaboração de Termos de Referência que congregassem na sua essência os principais problemas a resolver no território e sugerir a visão de futuro para Luanda, recorrendo já nesta fase à especialistas internacionais para o efeito, tendo ela concordado na estratégia, passamos à acção. Desta maneira, o IPGUL participou desde o primeiro ao último dia em todo o processo que viria a se concretizar neste Plano que ficou aprovado oficialmente em 2015. 

O outro exercício que sugeri foi que este processo fosse feito de forma célere, para conseguir contornar os do “bota-abaixo”, como sabes estão sempre atentos para complicar, e não para ajudar, assim, orientamos aos consultores responsabilizados pela preparação dos Termos de Referência que trabalhassem com alguma rapidez. Graças à Deus conseguimos encontrar uma empresa que, de facto, tinha um conjunto de especialistas que compreendia a visão que transmiti, e fizemos os Termos de Referência que (modéstia à parte) estavam bem-feitos. Obviamente, nada é feito na perfeição mas o fundamental estava aí; - Os Termos de Referência estavam prontos para os passos seguintes. Depois sugerimos que estes fossem levados à aprovação pelo Presidente da República, no sentido de lhe dar a eficácia jurídica. 

É engraçado que na abordagem que fizemos na altura, na Comissão Permanente do Conselho de Ministros, o tema Luanda de tão profundo acabou terminando numa discussão que abarcou o nível Nacional. Aliás, nós o grupo técnico, fizemos de propósito que as discussões tivessem este nível de abrangência, porque pensar o território de Luanda sem o resto do país não funciona, os problemas de Luanda não se esgotam em Luanda, na verdade, muitas das soluções do ordenamento da Capital estão fora de Luanda. Então era preciso pensar o território Angola numa perspectiva de constituir a estratégia territorial que passasse por montar uma verdadeira Rede Urbana Nacional com uma escala territorial bem clara que permitisse definir o que é de primeiro, segundo e terceiro nível, nesta escala territorial, obviamente. A outra visão que levou foi a integração de Angola na região africana onde se localiza, porque o País tem muitos aportes a dar à região e o território de Luanda em particular, fizemos finalmente uma ligação da abordagem na perspectiva internacional pelo, óbvio fenómeno da globalização. 

NÃO DEIXE DE ACOMPANHAR O PRÓXIMO TRECHO DA ENTREVISTA QUE O NOSSO INTERLOCUTOR CONTINUA A ABORDAR OS PROCESSOS RELACIONADOS COM A PRODUÇÃO DO PDGML