quinta-feira, 12 de março de 2015

ENTREVISTA COM SIMÕES LOPES DE CARVALHO

 
"O PLANO DIRECTOR NÃO SERVE PARA DAR LUGAR A CONSTRUÇÃO"
Fonte: Semanário angolense(2011)

Fernão Lopes Simões de Carvalho, o autor do primeiro plano de Urbanização de Luanda , natural de Luanda é o homem que criou o gabinete de urbanização de Angola, nos primórdios dos anos 60, tendo, em 1962, projectado o plano de urbanização do então distrito de Luanda.

Trabalhou no plano dos lotes do prenda, as chamadas unidades de vizinhança, projectou o bairro dos pescadores, na Ilha de Luanda e a zona do Futungo de Belas. Nesta conversa com o semanário Angolense, o urbanista emite a sua opinião em relação a ilha artificial que está a se erguer na baía de Luanda e, enquanto mais velho, apresenta-nos a receita para um êxito de um profícuo plano de urbanização.

É este experimentado arquitecto, que trabalhou com o prestigiado urbanista Le Corbusier, que o SA entrevistou, a margem do X congresso da União Africana dos Arquitectos, decorrido em Luanda, de 14 a 17 de Junho de 2011.

Por: Cláudio Fortuna

SA- Como vai para a arquitectura?
SC- Fui, porque o meu pai chegou a essa conclusão. Frequentei o liceu salvador Correia somente durante três anos, e porque o meu irmão mais velho não havia conseguido grandes notas no liceu e foi para o ensino particular, o meu pai achou por bem mandar-nos para metrópole, para Lisboa a fim de estudarmos. Posto lá, entusiasmei-me com a arquitectura ou seja, sempre tive vontade de fazer projectos, casas, porque me fazia muita impressão ver todas as manhãs, milhares de empregados indígenas descerem as barrocas e irem trabalhar. E como tinha convivido com eles nos meus quintais, ainda hoje tenho umas medalhas nas pernas que adquiri nesta altura, porque andava na terra a brincar com eles, que eram feitas com cacos de garrafas, não sei porquê, mas o facto é que ainda hoje tenho estas medalhas nas pernas. Então, tive sempre o desejo de fazer arquitectura, na altura até fiz um concurso para o superior técnico, julgando que era o engenheiro que fazia casa. Depois, cheguei a conclusão que não era o arquitecto. Então, fui para a arquitectura e, a certa altura, tive de cumprir o serviço militar, e porque estava dispensado das aulas deixei de assistir, então compassava com leituras de uns livros do Gasson Bardé, que foi um grande professor de urbanismo, na Bélgica, e também no norte de África, Linbandine Blandumir e Pierre Surtie. Comecei a estudar esses livros na tropa, porque não podia ir às aulas, quando fosse às aulas de urbanologia, que era na altura como se chamava em Lisboa, no largo da biblioteca, ao pé do Chiado, cheguei à conclusão que eles também não me ensinavam nada de urbanismo, que o professor Paulino Montez, que ate era o director só dava parte de glométrica, dizendo que, se quiséssemos que a cidade se expandisse para um determinado sítio, teríamos de colocar lá um parque. Foi o que fizeram com o parque Bom Santo e pouco mais ensinava, havia o assistente, Rui Teixeira que nos mandava fazer um plano de urbanização de umas termas, ah! Já sabia mais do que eles, através dos livros que estava estudar da Bélgica, do Gasson Bardier, então cheguei a conclusão que tinha de ir aprender urbanismo e achava que era pouco estudar somente aquilo.
Entusiasmei-me e um dia, fui a boleia dada por um rapaz aqui de Angola, Rui Martins da Silva, cujo pai era dono do primeiro arranha-céus que se fez na marginal, que era um homem dos cafés e casou Barbahã, filha do Dante Barbahã.
Eles foram daqui de Angola, iam para Paris, e eu disse-lhe que gostaria de ir para Paris e pretendia aproveitar a boleia deles, por isso, fui pedir uma bolsa de estudos no Governo, por meio do Instituto da Cultura Português, disseram-me que não davam bolsas à arquitectos que não tivessem já o diploma. É claro que já tinha o curso, só queria ir defender uma tese, acabei por ir para Paris de boleia e fazer o curso de urbanismo, ao mesmo tempo que começo a trabalhar com Le Corbusier, numa sua equipa, que era dirigida por Andrew Bonjasky, autor dos projectos de execução de Le Corbusier.
SA- Como foi ter contacto com um gigante da dimensão de Le Corbusier?
SC- Em Portugal, tive contacto com um arquitecto do Porto, que me dizia que era muito difícil entrar no escritório de Le Corbusier, mas como sempre fui muito ambicioso, logo quis ir para o melhor e como o melhor na altura era o Le Corbusier, fui. Depois tive dificuldades em entrar e trabalhar com ele, mas lá lutei e consegui entrar para a equipa, dirigida na altura por Andrew Bonjasky, que desenvolvia os projectos de Le Corbusier.

SA- E a experiência de estar em Paris e depois a vinda para a Luanda trabalhar nos seus primeiros planos directores?
SC- Repare, quando acabei o curso de arquitectura, a tese defendia-se uns anos depois de fazer um estágio, e tinha necessidade de fazer um estágio, que fiz, primeiro no gabinete do arquitecto Lima Franco e Manolo Potier. Lima Franco era um arquitecto que fazia quase todos os planos de urbanização da cidade de Lisboa, foi aí onde conheci um desenhador que, sabendo que eu era de Luanda, que queria vir para cá fazer um estagio, disse-me assim: o melhor que tem a fazer é ir para Luanda e aprender urbanismo, porque vi que com o Lima Franco e Manolo Potier não aprendi urbanismo, quem fazia lá urbanismo era desenhador, de que não me lembro o nome agora. Foi esse desenhador que me aconselhou a ir para o gabinete de urbanização do Ultramar, que era na Alameda Afonso Henriques, em Lisboa. De repente Fiquei a pensar como é que havia de entrar!
Num determinado dia, ia passar pela Marques Pombal, cá em Luanda, tive cá um professora de canto coral no liceu, e, ao passar pela Marques de Pombal, surge um indivíduo, chama-me, dá um abraço e diz assim: eu sou Macho da Cruz, o que você esta aqui a fazer? Respondi-lhe, olha acabei de fazer o curso de arquitectura, tenho de fazer uma tese, mas tenho de fazer primeiro um estágio, que gostava de fazer no gabinete de urbanização do Ministério do ultramar, mas não sei como hei-de fazer.
E ele diz-me assim: mas você quer ir ao gabinete de urbanização? Está bem. Puxou um cartão que dizia qualquer coisa Machado da Cruz, cone de Kalus, perguntou-me: mas quem é que o director? Disse-lhe que era o arquitecto Aguiar e o Círios Cruz. Então fez-me um cartão dizendo: Caro amigo, vai um meu protegido, que gostava muito de trabalhar consigo. Quando chego, fiquei convencido que o arquitecto Aguiar nem conhecia o cone de Kalus. Mas o que sei dizer é que ele mandou-me esperar e me admitiu no gabinete de urbanização do Ultramar, onde já havia outros estagiários, mas passado pouco tempo a quem eles tratavam por arquitecto, mesmo sendo ainda diplomado. Quando lhes disse que queria aprender urbanismo, ficaram admirados, mas também o arquitecto Aguiar não fazia urbanismo, quem, fazia afinal os planos era o desenhador que me tinha aconselhado a ir para lá. E digo, oh aqui também não aprendo nada, porque, no fundo, todos os planos que vocês viram ali, projectos na comunicação da Manuela da Fonte, são planos sem uma base de inquérito preliminar da população, sem uma base profunda do estudo da terra, da topografia, da construção, geológica, nada disso! Eram feitos no Ministério do Ultramar, eram mais desenhos que outra coisa, que, afinal de contas, não eram concretizados, porque não tinham uma base que deve existir no urbanismo, que é a resolução dos estudos preliminares dos inquéritos a população, os inquéritos ao clima, ao terreno, tudo isto tem de ser feito, e eles lá não faziam. Digo então, tenho de me ir embora, vou para Paris, fui pedir uma bolsa ao Instituto da Cultura, disseram-me que só davam as pessoas com diploma, foi assim que, em 1955 fui para a França.

SA- Em que Universidade estudou em Paris?
SC- Foi na Sorbonne , que era o Instituto de Urbanismo da cidade de Paris, faculdade de letras de Sorbonne. Depois, e como tinha deixado amigos no gabinete de urbanização do ultramar, quando houve os concursos para os planos directores em Angola, avisaram-me, mas como não tinha o diploma, que só vim a defender seis anos depois, porque até não era preciso a tese, o próprio director do Instituto passou-me um papel a dizer que estava apto e que quinze dias depois teria o diploma. E tinha o papel de Le Corbusier, dizendo que estava a trabalhar com ele e que estava apto a fazer arquitectura sozinho, mas o que sei é que não me ligaram nenhuma, com a única razão de já havia outras influências e outros programas de fazer o plano de urbanização daquela zona, que haviam sido impostos ao Ministério.

SA- Como foi criado o Gabinete de Urbanização de Angola?
Quando cá cheguei, apresentei-me ao Gabinete, mas a Câmara não me recebeu. Mandei dizer isto ao Ministério do ultramar, foi o próprio ministério do ultramar que me enviou para liceu Salvador Correia, onde passei a dar aulas de geometria descritiva. Quer dizer, eles sabiam, porque vim parar a Angola com passagens pagas pelo Ministério do Ultramar, eu, a minha mulher e os meus bebés, num barco que se chamava o Kwanza.

      Plano para o Bairro dos pescadores Ilha de Luanda/Arq. Simões de Carvalho 1963(Fonte: Manuela da Fonte 2012)

SA- Quantos planos projectou para Luanda?
SC- Oh! Não sou capaz de lhe dizer, porque, a certa altura, os planos directores não servem para construir, o que permite a construção são os planos de pormenor. Depois da célebre reviravolta das catanas, como a gente lhe chamava, que matou muita população indígena e europeia, indiscriminadamente na altura, tive necessidade de propor ao Presidente da Câmara, que se passasse imediatamente aos planos de pormenor, que havia de permitir a construção, por exemplo, do Bairro dos Ferreiras, que fica entre a Avenida do hospital e a de Serpa pinto, havia um bairro de moradias antigas. Dada a proximidade do centro, propus logo a habitação colectiva, quer dizer, tinha de se fazer um reajustamento parcelar ou seja, unir vários lotes de casas para fazer blocos de habitação colectiva, porque se precisava uma densidade de população no centro também. Tudo isto foi feito no gabinete de urbanização, sob minha orientação, houve muitos planos desses. Por exemplo atraiu-se o J.Pimenta, que era um grande construtor em Lisboa, veio para cá construir, desenvolveu-se o António Campino, entusiasmou-se de tal forma com esta cidade que quis fazer por detrás da estátua da Maria da Fonte, ao Kinaxixi, chegou a projectar lá no gabinete uma catana, era uma estátua a catana, porque, no fim de contas, despertou a vontade de fazer isso andar para frente. Depois começou-se a fazer planos de pormenor que permitiram construir em Luanda coisas já baseadas nos planos de pormenor, porque uma coisa que se deve fazer é que o plano director não serve para dar lugar a construção, são os planos de pormenor que dão lugar a construção e devem criar uma disciplina arquitectónica. Isso você pode ver nas minhas maquetas, que fizeram o gabinete de urbanização, dá logo a volumetria e o tipo de construção a fazer. A área de acesso ao pilar ou não, dá tudo, isto é o regulamento dado por mim, directamente.
Eles não encontram coisas escritas, umas das coisas que me foram perguntadas em Lisboa, foi esta gente que agora encontrou coisas minhas no gabinete, perguntaram-me se não havia nada escrito. Respondi que, tudo bem, posso dizer o que é que há, porque, a certa altura, o plano director já estava na minha cabeça, e num esquema de escala 2500, estavam as grandes linhas mestras, no entanto, era para fazer unidades de vizinhança.


















Unidades de vizinhança do Prenda/Arq. Simões Lopes de Carvalho(Fonte. Google)
 
SA- Particularmente na baixa de Luanda, quais foram as zonas em que esteve envolvido como urbanista?
SC- Bom! Houve o Comando Naval, que era para limitar a certa altura que os técnicos das Câmaras, quer em Portugal continental quer nas Províncias Ultramarinas, como lhes chamavam, eram muito mal pagos, o que gera a corrupção, e porque eles tinham de alimentar as famílias e os ordenados eram tão baixos que nem dava para alimentar as famílias, que tinham que fazer projectos por fora. Por exemplo, vivi particularmente no Rio de Janeiro e nunca precisei trabalhar mais de seis horas por dia.
Em Portugal e aqui trabalhava-se dia e noite, sábados e domingo, e os arquitectos dos serviços oficias eram sempre mal pagos, dai gerasse a corrupção. Toda vida combati a corrupção, e que o governo da província fazia? Como não queria projectar para as zonas que odiava, dava-me edifícios para projectar, por exemplo, ganhei o concurso do centro da emissora oficial, que é hoje, a Rádio Nacional de Angola. Ganhei porque? Porque, quando defendi a minha tese, que preparei enquanto estava em Paris, havia ido visitar os centros de televisão franceses, depois fui a Londres, ai preparei uma tese, que defendi em Lisboa. Foi um centro de televisão que estudei em Paris e em Londres, quando fui defender, era o professor Brandão, que já conhecia de Angola, cujo pai foi director do hospital Maria Pia e coronel médico.

Edifício da Radio Nacional de Angola, projcto de Simões Lopes de Carvalho(Fonte: Google)

O filho andou comigo na escola primária, cá, e nas explicações do célebre Augusto Chaviata, que era professor fabuloso, e do professor Teixeira. Ah, umas das grandes praças que projectei para a baixa, era a praça das Portas do Mar, que ia do Banco de Angola ate aos correios, em homenagem ao antigo Cais que ali existia e onde os barcos desembarcavam, ainda não havia aquele molho do porto, isto foi antes de eu ir para Portugal, na década de 1940. Nessa altura, não havia o porto de Luanda, os barcos atracavam na Baia, onde também fundeavam, e depois viam-se gasolinas, que eram pequenos barcos que levaram os passageiros até as Portas do Mar. Tenho na minha memória que as portas de Mar passavam assim uma grande praça que, infelizmente, não se fez.


 Perpectiva do Edifício da Faculdade de Medicina-Luanda/Arq. Simões de Carvalho 1963(Fonte: Manuela da Fonte/2012)

SA- Gostava de ouvir a sua virtude de razão em torno dos condomínios fechados, porquê que tem uma aversão aos condomínios?
SC- Tenho, porque o condomínio é uma segregação, não se pode fazer um plano de urbanização assim desta maneira, um plano de urbanização só é valido se promover o desenvolvimento económico, social e cultural das populações. Você acha que o condomínio fechado vai contribuir para o desenvolvimento do pobre que existe em Luanda, daquele? Os indivíduos que estão aqui a morrer a fome à volta? Não vai!

SA- Isso implica exclusão Social, arquitecto?
SC- Claro! Já esta a criar, e está provado que, no mundo inteiro, onde houver exclusão social, há revoltas da população, há crimes, há tudo mas, a revolta é própria dos podres em relação àqueles que vivem nos condomínios. E com que razão é que eles fazem os condomínios? Dizem ser questão de defesa, francamente, a defesa é compreendida ao povo que nada tem? Desde que ele seja educado a perceber que tem de trabalhar para chegar onde o outro chegou. Os meus pais não eram ricos, faço os planos para ver se as populações todas enriquecem e não para empobrecerem, é para enriquecerem, é só com contacto entre as várias categorias sócias que os mais pobres se desenvolvem. Portanto, os condomínios fechados são segregações, e não pode haver segregação numa cidade.

SA- Como viu a destruição do mercado do Kinaxixi?
Mal, porque era uma obra de um grande arquitecto, que foi o Vasco Viera Da Costa, uma obra de um movimento moderno, pode dizer-se que pertencia ao movimento moderno e que poderia mudar-se-lhe a função, se quisessem, podia transformar-se num centro comercial, mas destruir...muito mal! Sei que é um grupo económico de grande potência que lá esta a construir mais uns monstros que vão descaracterizar aquela parte da cidade, não acho que tenha sido uma boa solução.

SA- Tem-se dito que aquela zona do Kinaxixi é uma área sensível, por causa do nível freático…
SC- Sem dúvida nenhuma, nível freático, não digo. Mas a baixa de Luanda é uma zona sensível, sei por exemplo, que na baixa, a um metro, encontramos a água do mar, e estão a fazer caves na baixa, com não sei quantos pisos, as fundações desses prédios custam uma fortuna, está a se desperdiçar muito dinheiro. Sei que Angola é muito rica, mas está-se a deixar perder muito dinheiro estupidamente, a baixa de Luanda não podia ter prédios altos. Se a ilha de Luanda um dia desaparecer, com o degelo que está no pólo norte, a água dos mares que estão a aumentar. Em Portugal, por exemplo, a zona de Kaxis e partes está em risco de ser inundada, a Ilha de Luanda e a baixa de Luanda, também, vão também um dia sofrer esse impacto, esses tsunamis que temos, caso um dia isso cá chegue. Tudo se está a fazer erradamente, fazer caves para estacionamento na baixa de Luanda, quanto é que você julga que deve estar a custar? Uma fortuna louca, porque aquilo é água, está-se a desperdiçar dinheiro, assim como os vidros que são usados aqui.

SA- Há um projecto megalómano do governo angolano que é de construção de um milhão de casas. Enquanto arquitecto urbanista, acha que é possível fazer-se nesta legislatura?
SC- Acho muita pressa, e continuo a dizer que, se esse um milhão tiver em consideração a habitação do povo, habitação dos indivíduos que vivem hoje nos musseques, se construírem para as populações que vem dos musseques, essas populações não vão saber habitar naquilo, não se vão sentir bem. Devem, primeiro, passar pelos tais bairros-escolas antes de irem para essas habitações. Ouvi dizer que estavam a fazer blocos de habitação colectiva com vários andares para por as populações que vão sair do musseques, não pode, eles não sabem habitar naquele espaço. Os portugueses, já lhe disse, na Europa, não conseguiram isso, as banheiras serviam de celeiros, os corrimões das escadas eram vendidos, porque eram economicamente débeis, não tinham dinheiro, então retiravam os corrimões e vendiam os ferros para terem dinheiro. Ora isto são coisas que acontecem a nível europeu, quanto mais entre nós!
SA- Precisamos de outros bairros indígenas?
SC- Não, precisamos de bairros-escolas, os bairros indígenas não podem ser só bairros indígenas, temos de fazer a mesclagem, que são tais unidades de vizinhança, não podemos fazer só bairros em que as várias categorias sócias se misturem, não podemos agarrar e fazer só casas para um tipo de população economicamente débil, não podemos, temos de as misturar com populações de mais rendimentos. Quando fizermos isso, não será preciso fazer-se condomínios fechados, os vizinhos nunca atacam os vizinhos, porque sentem apoio neles, as raízes são estas, é convivência social que é preciso promover.

SA- Há quem diga que no plano de De Groer continha uma componente do verde muito acentuada…
SC- Sim, mas o meu também tinha, previa, depois de toda esta zona, e para já, por detrás do aeroporto, era uma linha de àgua que era transformada, com cerca de quinhentos metros de largura, em zona verde, e em cada uma daquelas partes havia uma zona industrial, com quinhentos metros de largura. Depois havia zonas de habitação, para separar a zona industrial da zona de habitação, era tudo verde, passava do plano radicocêntrico para o plano linear ao longo da costa, a caminho do Kwanza. É o que se está a fazer, mas com os condomínios fechados, em vez de fazer com unidades de vizinhança, em que se misturariam as varias etnias e as varias categorias sociais.

SA- Segundo se diz, Vasco Viera Da Costa defendia muito a circulação dos ventos nos seus planos, o que sabe sobre isso?
SC- O Vasco Viera Da Costa não tinha plano para Luanda, pelo menos não conheço.

SA- Pelo menos nos seus projectos, havia essa componente, como foi o caso do Mercado do Kinaxixi, e do edifício das Obras Publicas?
SC- Ah! Isso está bem, mas é de Arquitectura. Repare que o edifício das obras publicas esta integrado no plano de massa que fiz da baixa de Luanda. Ainda eu estava no Gabinete, ele foi ter comigo a pedir regras para projectar aquele edifício, ele cumpriu e fez muito bem, porque era, de facto, um grande arquitecto. Agora, é preciso ter-se em consideração que Angola não tem só um clima, toda a parte costeira, a parte marítima, é dum clima, mas o interior já não é um clima igual, não precisa de ventilação transversal. No interior, temos climas frios secos, ambientação transversal interessa para a parte dos climas litorais e tem as brisas marítimas, que são frescas e podem promover a frescura para uma ventilação transversal.

SA- Enquanto arquitecto-urbanista, quais são os requisitos fundamentais para se fazer um bom plano de urbanização?
SC- Antes de mais nada, constituir uma equipa pluridisciplinar, envolvendo geográficos, sociólogos, demógrafos, historiadores, antropólogos, indivíduos que conhecem a qualidade dos solos, agrónomos, hoje, é prioritário criar-se aldeamentos agrícolas no interior, para fixar as populações, porque a população não vive do petróleo, não come petróleo, só está a enriquecer o estrangeiro que vem cá busca-lo, determinadas classes políticas e mais nada, é preciso dar alimentação ao povo, o povo sabe cultivar a terra, é fácil, é a terra, a agricultura, a pastorícia e a pesca que tem de ser desenvolvida.

quarta-feira, 11 de março de 2015

ENTREVISTA COM O ARQº. PEDRO NETO (Parte 2)

"EM URBANISMO NÃO EXISTE LARGO DAS ESCOLAS, É UM ERRO QUE PROVOCA DESURBANIZAÇÃO"


Por: C. Martinho

Arq. Pedro Neto, um homem que afirma estar realizado 

Nesta ultima parte da entrevista Pedro Homem revela-se um profissional realizado falando de si nas várias vertentes, aborda questões/conceitos do urbanismo que é feito em Angola, aponta soluções para o trânsito na cidade de Luanda, analisa a velha questão da elaboração e aplicação dos planos e não deixa de reflectir sobre o ensino da arquitectura e do papel da Ordem dos arquitectos;


Falemos agora de outra escala da arquitectura: o urbanismo. Como avalia o planeamento e a gestão urbana em angola em geral e luanda em particular?

É interessante que tenho dito ao pessoal que é mais fácil ser arquitecto do que ser urbanista. Hoje muita gente, depois de terminar o curso de arquitectura, diz que é arquitecto-urbanista, ourbanismo é muito complexo, envolve muitas outras áreas e disciplinas. Fazer um arranjo urbanístico numa zona como Luanda não é brincadeira, mas também não é coisa de outro mundo. Hoje por exemplo estão a desconcentrar os serviçosadministrativos em Luanda, deviam-se juntar todos osresponsáveis dos municípios e definir apenas "linhas estruturantes" e depois cada município também definir linhasestruturantes para as comunas. O projecto podia começar na comuna, pois o conjunto das linhas estruturantes da comuna daria as do município, e do Município daria as do País. O medo que eu tenho é o seguinte: fala-se muito do plano director de luanda, mas este instrumento vai incidir sobre que terras? Não existem terrenos em Luanda, a menos que for nas outrasProvíncias ou localidades devido a reclassificação, que é outro grande problema.


Em que consiste a reclassificação? 

O conceito de reclassificação consiste no seguinte: o Governo tem um território e depois decide amplia-lo, isto em urbanismo chama-se reclassificação. Segundo a Organização das Nações Unidas as cidades mais complexas do Mundo têm mais de 10% da população do seu País. Luanda, é das cidades mais populosas pois tem mais de 35% da população de Angola, isto porque o Governo não compreende que não pode ampliar o território, quanto menor for o território melhor é a sua gestão, então hoje temos muito mais dificuldade em fazer um plano director para toda Luanda, porque agora tem um território muito grande, com uma população muito concentrada, providenciar serviços para uma população concentrada é muito mais difícil, é muito mais difícil criar um elemento importante no arranjo urbanístico, que são as vias, que não temos.

Hoje nós estamos a adiar um problema sério em Luanda, principalmente no trânsito em que devemos projectar novas vias, não estou a dizer ampliar as vias existentes, conforme está a ser feito agora, isto não resolve. É interessante que tanto, em inglês, português, espanhol como em francês, "engarrafamento" vem de garrafa que depois no gargalho afunila. Em Luanda é isso que acontece. Nós ainda não pensamos no seguinte: qual é a maneira mais rápida de levar a população de Viana e Cacuaco até ao centro da Cidade? Pensamos passar por uma via, mas é necessário partir (demolir) edificações, outra alternativa seria, como fazem os novos Estados, colocar no ar, assim resolve-se o problema; 

Hoje temos graves problemas em confundir projectos de loteamento, requalificação ou reconversão. Eu há dias chamei atenção a alguém na faculdade, que estava a trabalhar num projecto de requalificação, quando na realidade tem que ser um projecto de reconversão, porque existem lugares onde não se pode fazer projectos de requalificação;


Talvez falta-nos alguma legislação que ajudaria a definir balizas, por exemplo o regeu e a lotu contemplam algumas definições, não temos os conceitos devidamente definidossobre requalificação, reconversão ou renovação urbana. Qual é o seu parecer sobre a questão?

Basicamente, quando falamos em projecto de urbanismo, urbanização, nós no fundo consideramos um espaço "limpo", aqui em Luanda, questiona-se: onde vamos projectar um espaço "limpo"? Existem zonas que eu não chamo musseque, em que podemos eliminar toda ela, porque não tem nada de arquitectura. Há zonas com muita confusão onde existe arquitectura para estudar e aproveitar, mas outras áreas não há arquitectura então a solução é projecção urbana, Urbanismo ou projecto de urbanização, considerando aquela zona como não existente…

Demolir tudo e fazer novo? Quer dar um exemplo de uma zona que talvez pudesse ser alvo de um processo como este?

O exemplo é mesmo o próprio Sambizanga…

Mas se tiver que demolir e construir tudo de novo que nome se dá a este processo?

Chamamos a isso, projecto de urbanização;

E quando é que estamos perante uma requalificação urbana?

A requalificação obriga que você tenha uma taxa de demolição. Por exemplo em muitos Países conservadores só é permitida a demolição até 20%, nós no curso de arquitectura demos aos alunos a possibilidade de demolir até 30%, isto quer dizer que o aluno vai aproveitar talvez alguns equipamentos sociais existentes e as estradas. O termo "reconversão" vem de "converter" o que significa converter uma zona para outra. Por exemplo uma zona habitacional é convertida para uma zona com outra função, mas a expressão "reconversão" não é do urbanismo puro, porque na verdade é uma expressão que deriva da requalificação. As pessoas aplicam muito isso quando o projecto de urbanização vai beneficiar 100% as pessoas que vivem na zona, quer dizer, eu vou alterar a organização do espaço destas pessoas, se eles estão na horizontal e vou coloca-los na vertical, e vou dar funções diferentes nestes espaços, por isso é que chamam reconversão que em urbanismo puro não existe. Nós devíamos chamar projecção urbana, mas esta medida seria muito dura porque iria afectar a população uma vez que vai-se "limpar tudo" então para diminuir este impacto as pessoas usam a expressão "reconversão". Mas a reconversão tem graves problemas no sentido de que, se você vai fazer um arranjo do espaço é melhor ter cuidado em seguir novamente o traçado de ruas existente, porque o que acontece nestas reconversões é que pensa-se que os traçados não devem ser alterados. Ora nós em Luanda temos muitas ruas nas transversais e temos poucas nas perpendiculares, o que acontece é que se alargamos muito uma perpendicular, mas como ela é muito interceptada aumenta o congestionamento, e esta reconversão devia criar ruas que dividem distritos, que não permitem grandes cortes/interligações. As ruas que vão permitir interligações devem ser nos micro-distritos e as ruas de zona (um exemplo é o Cazenga) desta forma nós só estaremos adiando o problema do trânsito;

Fale-nos um pouco do zango que é objecto de opiniões diversas. Há quem olhe para o zango como um bom exemplo de projecto urbano mas também há quem considere um mau exemplo. Sei que esteve por detrás de todo este processo, comtudo de bom e mau do projecto. Qual é a sua justiça sobre o assunto?

Eu tenho dito ao pessoal que é necessário fazer a história do Zango. Em 1999 houve grande chuva que provocou a derrocada das barrocas da Boa Vista, o Sr. Presidente da Republica, na altura, decidiu retirar parte da população e colocar no Zango, e muitas vezes os governantes colocam-nos em desafios, eu e o falecido arquitecto Barros Miguel, tínhamos que fazer uma malha que iria receber naquela primeira fase 4.200 famílias, nós projectamos o Zango 1 para isso. Qual era a condição? As famílias viviam em 3, 6 até 10m2 de espaço na barroca, nos foi proposto projectar habitações com 40 metros quadrados o que daria apenas 2 quartos e eles (os populares) não aceitaram, então passamos a 61 metros quadrados com um valor de 6.000 USD, portanto a condição da casa estava muito associada ao valor disponibilizado. O Zango era uma boa solução habitacional para quem estava a sair daquela barroca, onde projectamos que cadacasa tinha a sua infra-estrutura, equipamentos para servir, depois também tínhamos os raios de acção urbanístico, com escolas, em300 a 500 metros de raio, com postos e centros de saúde. Será que se devia replicar o Zango? Eu aí já digo que não, porque depois replicamos até ao Zango 4 porque o Estado já não quis ouvir a opinião dos técnicos. Ora, se em 1999 aquela solução servia, para 4.200 famílias hoje em 2014 já não serve, o Zango hoje está a chegar próximo do novo aeroporto, já estamos quase no Zango 5/6 e já não deve ser assim, é verdade que no Zango 3 e 4 melhoramos bastante a casa, porque aí o governo nos abriu a possibilidade de não ser mais o custo de 6 mil dólares mas sim 16 mil, então já colocamos tecto falso e outros acabamentos. Aquela habitação até agora é uma casa social, e dentre as casas sociais continua a ser a mais barata.

Hoje está ser pensada a casa de baixa renda (veja a expressão), com 100 metros quadrados e eu não estou de acordo, aliás ela até já foge a legislação que o próprio Governo estabeleceu, que contempla áreas mínimas para habitações, isto já não é habitação social, só que o Governo esqueceu que em termos de infra-estrutura vai gastar duas vezes mais do que se mantivesse aquela casa social. Nós devemos pensar a arquitectura como o homem, nós existimos e amanhã deixamos de existir, a organização da casa também passa com o tempo, daqui a mais 20 anos provavelmente aquele quarteirão que alberga 20 casas no Zango talvez eu coloque uma torre, vãos manter as ruas e os equipamentos, devemos pensar assim;

Ainda falando de urbanismo está em voga a questão das centralidades urbanas e o seu conceito. Como vê isto, no nosso contexto?

É uma saída, hoje o desenvolvimento obriga a concentração da população, os últimos problemas que temos tido nas centralidades é que elas são bem projectadas, mas são servidas com escassos equipamentos sociais, o Governo precisa estudar um elemento que em arquitectura se chama "fluxo de transportes", precisa saber: de onde vem grande parte da minha população? Então projectar estradas para servir estas zonas, porque não é possível, pessoas que vivem nestas zonas usarem as mesmas estradas, as pessoas descontam os seus problemas no projecto, o cidadão passa a dizer que o projecto não presta quando na verdade o que não serve é o acesso;


Para Luanda, que hoje considera-se uma metrópole com mais de 6 milhões de habitantes, que solução acha que se podiam desenhar? Hoje fala-se em BRT, IRT até metrô subterrâneo ou de superfície, que sistema de transportes público propunha para atenuar o caos que se vive no trânsito na capital do país?

O poder económico que a população de Luanda passou a obter nos últimos anos, indica que o sistema de transporte não responde as necessidades, e como consequência cada pessoa passa a usar o seu transporte pessoal, é verdade que também é uma fase, outros Países passaram por isso, mas nós precisamos encontrar soluções. Falou do BRT, se este sistema fosse uma linha de transportes em estradas novas podia ser uma solução…


Mas como fazer estradas novas se não temos espaço?

Há soluções, não temos que pensar apenas na horizontal, porquê que não colocamos as vias de transportes no ar ou subterrâneas? Temos que pensar nestas soluções porque ampliar a rua não resolve. O problema não está na estrada principal mas sim na via que vai dar a estrada principal. Depois quando todo mundo tenta ir à estrada principal como é única ela fica congestionada;


Ainda sobre a questão do planeamento territorial e urbano, coloca-se a questão dos planos directores, hoje há quem entenda que a sua filosofia e pressupostos não funcionam para a nossa realidade. Quando fala em definir linhas estruturantes apenas, está a propor uma inversão na forma de elaboração dos planos?

Nós temos que pensar contrário agora, o grande problema é que já temos uma cidade muito consolidada, o que tenho dito aos arquitectos e urbanistas é que os países mais populosos do mundo não têm as suas capitais com a percentagem que tem Luanda, que são mais de 30%. Para as Nações Unidas o máximo são 10%, então precisamos compreender o que faz sair esta população da comuna constantemente. Talvez seja o trabalho, então precisamos identificar qual é o trabalho, se fizermos isso provavelmente o cidadão não precisará sair da comuna. Precisamos saber qual é o melhor eixo entre a comuna e Município e ai a comuna vai determinar. Em relação ao município, de igual modo precisamos saber qual é a melhor ligação entre o Município e a Província, então os Municípios vão determinar.


Então isto vai implicar a revisão da lei de ordenamento do território, não acha?

Naturalmente, nós precisamos organizar de outra maneira a estrutura e não ficarmos apaixonados pelas estruturas que já existem, os que estão lá em cima muito deles não vivem esta realidade, então seria bom que nós indicássemos a realidade, porque é estranho, eu tenho mostrado um mau exemplo aos meus alunos: sabe que não existe em urbanismo um largo das escolas? Mas é estranho aqui no Largo das escolas está todo mundo a programar mais escolas concentradas, isto não existe em urbanismo e ninguém chama atenção. Cada escola deve ter um raio de acção, e esta situação do largo das escolas faz com que o professor de Viana ou Cacuaco, tenha de dar aulas no mesmo local concentrado na cidade, a coisa está de tal forma concentrada, que é um erro que provoca algo que se chama desurbanização administrativa;


Isto também tem a ver com a questão do ensino. Acha que já se justificam escolas exclusivamente de urbanismo em angola?

Devíamos ter escolas de arquitectura e tambem de arquitectura e  urbanismo em Angola, mas infelizmente não temos professores para isso. Há algum tempo atrás era ideia do Departamento de Arquitectura, até agora é, em passar para faculdade de arquitectura, mas eu levanto sempre a questão: quem são os arquitectos para dar aulas nesta faculdade? Se o curso de arquitectura, não conseguimos terminar em cinco anos como é que vamos pensar numa faculdade de arquitectura? Vamos ser honestos, precisamos de mais quadros; Na verdade, não é que não os tenhamos, mas eles não estão talhados para entrar numa faculdade de arquitectura, onde como governante politico, ele ganha 5 vezes mais, e vem para as escolas para ganhar quase nada, tenho colegas que ganham 80 mil Kwanzas;


Agora falemos um pouco de si. Como professor é conhecido como alguém muito duro, quer comentar isso?

Tenho dito aos meus alunos que penso bastante neles, mas eu não sou muito apaixonado pelo aluno, prefiro que o meu aluno compreenda que preciso inculca-los valores, que entenda que o professor está aí para lhe transmitir conhecimentos/ técnicas de projecção do que o professor ter muita relação com o aluno, de facto acontece que todo meu aluno diz que sou muito exigente, mas depois todos eles são meus amigos porque eles dizem sempre que eu transmito aquilo que é arquitectura. É verdade que sou muito exigente porque também estudei com professores exigentes;


Porquê que é mais conhecido como engenheiro?

Primeiro porque licenciei-me em arquitectura na faculdade de engenharia da UAN e depois estudei noutra faculdade de engenharia no Chile, então as pessoas conhecem-me como engenheiro porque faço cálculo de estruturas e dirijo obras. Portanto depois da licenciatura não fiz pós-graduações em arquitectura mas em outras áreas como demografia, urbanismo e engenharia estatística. Eu faço cálculos de estruturas não com o que aprendi no Chile mas na Faculdade de Engenharia(UAN), que antigamente apesar do número reduzido de docentes, tive um professor muito bom chamado Molares de Abril que ensinou-me a calcular, que é uma coisa com a qual me apaixonei;


Como especialista em demografia, como avalia o censo realizado este ano em Angola?

Muito bom, Angola está de parabéns pois pela primeira vez realizou um bom censo populacional. Lembro-me quando fiz a minha tese para ser demógrafo precisava do censo de 1970, comparando os dados deste censo com o actual, só vendo questionário do censo realizado este ano, verifica-se que estamos muito avançados. É como tudo, muita gente pensou que os resultados do censo seriam divulgados todos em pouco tempo, mas não, agora tem que se trabalhar, gerar tabelas organizadas e leva alguns meses; Com este instrumento, se for bem usado, podemos organizar melhor a população, organizar as estradas. Por exemplo, o tamanho da população é que determina o tamanho da estrada, do passeio e do jardim…., não existe um rei no urbanismo que não seja a pessoa, o urbanismo usa a pessoa como elemento para o fim, mesmo que ela ainda não exista. 


Uma das questões que se coloca é que o Arqº. Pedro neto não aparece em fóruns e outras actividades ligadas à arquitectura e urbanismo incluindo a ordem. Pela experiencia que tem era de esperar que partilhasse conhecimentos com outros, numa sociedade cada vez mais em rede. Que comentário se oferece a fazer sobre o assunto?

Isto é verdade, eu nunca estive muito ligado à Ordem dos Arquitectos, só me inscrevi há dois anos, e porque o Arqº. Hélder José incentivou-me e apelou o cumprimento da Lei; Tudo isso porque a imagem que eu tenho é de que por sermos muito poucos arquitectos, nós não somos muito bem organizados, é a imagem que tenho, eu posso estar enganado. Outra razão é que estou muito ligada ao meu atelier, com coisas práticas e vejo que quando se sentam arquitectos continuam a defender muita teoria, muito apaixonados pelo antigo, vejo muita gente a dizer "olha estão a partir aquilo"  e eu me pergunto, onde está a cidade de Babilónia ou Tiro? Já não existem. As cidades têm vida própria, vão deixar de existiralgumas pessoas que aqui têm nome de arquitecto acham que todos os edifícios devem continuar a existir, mas não é correctoveja o que estão a fazer na Marginal de Luanda….

 

 

Acha o projecto da baía de Luanda bonito?

Bastante, as cidades são assim, elas crescem. Uma vez alguém decidiu definir gabaritos: nesta zona altura é esta noutra é aquela. Isto não existe. As alturas diferentes é que fazem com que as cidades se tornem dinâmicas…..


Mas há quem questione as peles em vidro exposto nos edifícios, que tem a ver com a questão do conforto ambiental. O que acha disso? 

Mas hoje existem outras tecnologias para as pessoas estejam à vontade no interior destes edifícios. É verdade que o vidro aumenta o calor no interior mas você hoje tem o ar condicionado e outras técnicas…


Não é contra isso?

Não, nós precisamos compreender que não estamos sozinhos no mundo, um mundo moderno é isso, você vai à cidade de Nova York, em Beijing ou outra cidade e encontra isso, o quê que nós queremos defender? Nós precisamos compreender que não podemos ficar atrás senão um dia de tanto defender a nossa arquitectura os próprios edifícios vão cair em cima de nós;

Fale-nos das obras de sua autoria, projectos em que trabalhou e que estão construídas e sente que valeram a pena;

Uma das obras é o ULENGO CENTER que é um Shopping e Parque de diversões 130 hectares, 190 lojas, com 5 cinemas, sala de jogos, sala de exposição, brinquedos, três praças de alimentação. Gosto tanto de um projecto que foi um dos meus primeiros projectos grandes - a fábrica de tintas Neuce, a Fabimetal (uma industria de transformação), o maior no Polo Industrial foi o Centro Comercial e industrial "Viana Park", projectei um instituto médio no Zango, esquadras policiais, postos de saude, centros comerciais ....No Talatona tenho um Centro Comercial e depois tenho muitos projectos particulares de casas; trabalhei durante 2 anos num projecto que me deu o maior pagamento que já recebi em arquitectura, sim, cerca de um milhão de dólares – O parque III da Barloworld , uma fabrica de montagem de tractores, geradores e outros de uma empresa Sul Africana, o interessante é que falo a lingua francesa e nao a inglesa mas tive que ir varias vezes a sede deles na cidade de cabo e em Joanesburg discutir com eles .... oh meu amigo... isso é só de arquitectos. Actualmente estou a colaborar com vários arquitectos nacionais e estrangeiros.... estou a fazer maquetes. Este é um sonho de criança e estou a executar uma maquete das estradas de Luanda... claro somente as principais, mas com relevo para mostrar como podemos contribuir na resoluçao do trânsito em Luanda.

    Viana Park, um projecto implementado na estrada de Calumbo-Viana


Mas o grande projecto é o Ulengo, pois não?

Acredito que sim, pelo valor. Agora apaixonei-me por brinquedos, estou a projectar o parque aquático, onde terei um mar artificial, um rio em volta e uma lagoa, eu sou daqueles arquitectos que sonha bastante, depois acordo e faço um traçado, mas penso sempre como vou mostrar a cara dele, para mim é muito importante a cara, quero que o pessoal identifique e diga que aquele é o projecto do meu professor, de um angolano. Depois temos projectos de urbanismo, o Zango, Sapú e Morar, os arranjos urbanísticos em várias zonas como o Kassama Residence, onde vamos implementar um grande projecto que é o atelier de arquitectura, achamos que já é momento de começar a divulgar melhor as nossas obras, especialmente numa área que eu amo bastante: maquete. Entreguei há pouco tempo ao Sr. Governador uma maquete do Banco Nacional de Angola, a minha ideia é fazer em miniatura todos os edifícios grandes que o BNA tem em diversas Províncias para mante-los, tenho a ideia de fazer a maquete do edifício do Palácio de ferro, o museu das forças armadas, acho que isso alimenta a arquitectura;

       ULENGO CENTER, parque de diversões e shopping Center, projectado pelo entrevistado 

Olhando para toda esta trajectória no ensino, materialização de projectos em arquitectura e urbanismo, sente-se realizado?

Sinto, hoje estou a treinar alguns arquitectos e engenheiros com quem trabalho, e uma das coisas que nunca faço é esconder alguma coisa deles, zango-me com eles quando fazem um projecto errado, infelizmente eles acham que continuo a pensar que são meus alunos, mas é bonito quando você vê que aquele a quem ensinamos está a corresponder, felizmente eu sinto que já alguma coisa fizemos;



    Fábrica de Tintas NEUCE, Projecto do Arq. Pedro Neto 

 

 

segunda-feira, 2 de março de 2015

2ª PARTE DA CONVERSA COM ÂNGELA MINGAS

 
"É  arrogância os arquitectos pensarem que são os autores da cidade"
Nesta ultima parte da conversa Ângela Mingas toca em temas candentes da cidade como a sustentabilidade, mobilidade, identidade, o musseque e o ambiente, abre o "livro"  falando de Luanda que considera uma "não-cidade" em colapso ambiental. A investigadora e docente universitária não tem dúvidas em afirmar que os arquitectos não são os únicos actores/autores da cidade, entende que  há valor numa "arquitectura sem arquitectos".  A nossa interlocutora emite a sua opinião abalizada sobre o perfil intelectual do arquitecto angolano, diz  quem são os arquitectos que fazem parte de uma  "linha de sedução" que quer perceber;    

    Ângela Mingas(fonte: www.google/publico.pt/)
 

Quando fala da arquitectura e africanidade, a quem considere, tal como Mia Couto quando fala dos "sete sapatos sujos", que há frases ou apelos que ficam, como a identidade, a sustentabilidade que se falam mas não passam de mera retórica. Acha que demos algum passo em relação a arquitectura identitária, para além de falar disso em fóruns?
Nós em Angola não, porque acho que posso dizer que a maior parte da arquitectura que se faz em Angola não é produzida por angolanos, e nem sequer são Africanos. Tanto é assim que nós enquanto classe reclamamos disso, sabemos que esta arquitectura é desenhada por um perfil de arquitectos que não nos "pertence". Quando eu falo da questão identitária eu falo de tudo aquilo que do ponto de vista simbólico (semiótica da arquitectura) corresponda à africanidade. O que nós utilizamos na nossa arquitectura condiz com a cultura europeia, o que é normal já que fomos colonizados por europeus. Consequência: quando olhamos em redor, o que mais vemos são princípios estéticos e signos europeus mais do que propriamente africanos. E o de lamentar é que tentar um discurso diferente redunda no argumento prosaico de que arquitectura africana são cubatas (o que é triste) quando a resposta estaria no resultado que se poderá ter após crítica arquitectónica consciente às obras de Francis Kéré (exemplo bem sucedido de arquitecto contemporâneo africano) e de Alexandre Costa Lopes (exemplo bem sucedido do arquitecto contemporâneo angolano), tentando perceber o que do ponto de vista sígnico, será comum entre um  e o outro.
Rem Koolhas diz que há o conceito de sustentabilidade, mas parece não passar de uma coisa retórica ou um mero "ornamento". Ângela, nos seus pronunciamentos muitas vezes aborda a questão da sustentabilidade. Numa sociedade como a nossa que passos estão a ser dados em direcção à sustentabilidade nas várias vertentes?
Não estou de acordo com a opinião de Rem Koolhas embora saiba que traduzir um conceito para que ele se transforme numa ferramenta não seja tarefa fácil. Do que tenho estudado, a sustentabilidade do ponto de vista arquitectónico tem que suportar o binómio estabilidade- equilíbrio de qualquer sociedade (cultural, económica, social, ambiental). O truque passa por não perder de vista duas escalas: a macro e a micro, ou seja, a cidade e o edifício. Sempre como cenários, nunca como protagonistas. Se por um lado, à escala da cidade, o binómio estabilidade-equilíbrio passa pela análise crítica da forma urbana (habitação, equipamento, estrutura verde e sistema viário) já à escala do edifício os pressupostos passam pela famosa tríade Vitruviana ( Venustas, Firmitas, Utilitas) e pelo Locus. No nosso país e com base na explanação que fiz, falta-nos regulamentar (e cumprir) estes princípios e quem sabe algum dia, certificar as "boas práticas" na área da sustentabilidade. Aí, posso falar daquilo que me dizia sobre a questão da estrutura verde e o colapso ambiental de Luanda…

" Luanda é uma não cidade em colapso ambiental" 
 
Permita-me cita-la: " Luanda é uma não cidade em colapso ambiental". São suas palavras e assume-as?

Assumo e posso explicar: a questão da não-cidade tem a ver com a perspectiva dos estudos de Maslow, (Pirâmide de Maslow), ou seja, com toda a noção de qualidade de vida que é preciso que uma cidade nos confira. Portanto uma cidade não é uma aldeia, a cidade não é só casa, a cidade dá até ao pico da pirâmide, conforto, disponibilidade e auto-estima ao cidadão, isto é que é uma ideia de compreensão da qualidade da cidade e é uma referência em tudo, os tais parâmetros da forma urbana: habitação, serviços, mobilidade e ambiente (qualidade de ar). Quando eu falo da não-cidade, eu falo do cidadão de Luanda não ter acesso, do ponto de vista da qualidade de vida, a estes parâmetros superiores. Quando tenho que andar 30 quilómetros para ir ao serviço eu não estou dentro destes parâmetros, quando demoro 40 minutos ou 1 hora para andar 2 quilómetros de carro, está errado, ou da insatisfação da conquista do emprego e do sucesso pessoal e profissional. Quando estes factores da vivência do cidadão são analisados (desde o primeiro até ao último dia do ano) e os resultados estão abaixo dos indicadores, chega-se à ideia da não-cidade;
E o colapso ambiental? 
Sustento isto outra vez dentro da ideia da sustentabilidade, que implica estar em equilíbrio nos quatro pilares (ambiental, social, cultural e económica). Vejamos: os estudos da OMS, do ponto de vista ambiental, dizem-nos que os espaços urbanos devem ter, por uma questão de oxigenação/qualidade do ar, o equivalente a 10 m2 de área verde por cidadão. Tivemos um ano com os estudantes a fazer estudos, e chegamos à conclusão de que dos 100% que a mancha urbana (de Luanda) deveria ter, só tem 7%. Quando olhei para os resultados conclui que alguma coisa estava errada e perguntei-me o que eu faria com aquelas estatísticas? Na altura, a minha mãe que é bióloga disse: "estamos com má qualidade de ar" e aquela constatação ficou retida. Naquela altura, o segundo indicador da mortalidade das crianças depois da malária eram doenças cardiorrespiratórias. Temos uma cidade que não tem verdes, qualidade do ar baixíssima, e o segundo indicador de mortalidade infantil são doenças cardiorrespiratórias provocadas….
   
   Trânsito caótico em Luanda
À sustentabilidade junta-se à mobilidade. Neste aspecto Luanda é um sério problema e algumas cidades do País começam a ter as mesmas preocupações, numa altura que Jaime Lerner diz que o "carro é o cigarro do futuro", gostava que comentasse isso;
Eu adorei esta metáfora. Julgo que o problema de Luanda é uma questão de gestão, e quando digo gestão estou a dizer mesmo má gestão, do ponto de vista do uso de solos, e isto naturalmente vai complicar. Não há cidades perfeitas, do ponto de vista do desenho urbano nada é ideal, tudo é adaptável, tudo é em conformidade com aquela realidade específica, mas nós na cidade de Luanda tivemos um processo de readaptação de uso de solos de tal maneira fora do normal que de repente temos uma polarização de uso de solos, centralização excessiva, despolarização habitacional, esvaziamento de espaços, obsolescência, ou seja, criamos ao longo destes anos um estado de sítio para a utilização da cidade. Então, a esta altura do campeonato até corrigir estes últimos anos vai demorar gerações;

Ângela é defensora acérrima do musseque com a sua geometria fractal com a sua orgânica, mas a crítica que se faz é que quem faz o musseque não é o arquitecto. Então muita gente tem dificuldade de reconhecer o valor de uma coisa produzida da forma como os musseques acontecem. Pode explicar isso?
É de uma arrogância tremenda os arquitectos pensarem que eles são os autores da cidade, eles não são. Julgo eu que Rudofsky conseguiu provar isso com aquele livro brilhante que ele escreveu "Arquitectura sem arquitectos", que não é um grande livro do ponto de vista da literatura, mas sim da imagem. Rudofsky prova neste livro que a forma da cidade não é feita por nós, ela é optimizada por nós (arquitectos) e algumas cidades como Brasília são desenhadas por nós. Normalmente a cidade desenhada por arquitectos corresponde às vezes a princípios e estratégias políticas, sendo o caso de Brasília exemplo disso. Mas Brasília não é só aquilo que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer desenharam, existe outra Brasília mais orgânica e igualmente interessante…
Então, a ideia do musseque não é defender a má qualidade de vida das pessoas, é defender a genesis do musseque. Neste momento nós ainda estamos num processo de compreender exactamente o quê que ele é como fenómeno centenário e oriundo de Luanda. Primeiro pelo sentido etimológico da palavra "museke" que significa areia vermelha, segundo por ter sido a primeira realidade de segregação que se gera quando se fundou Luanda e quer a literatura quer a cartografia histórica referencia o "muceque" como espaço para além do foral da vila, e terceiro pela mutação de significados que vêm desde o período esclavagista passam pelo colonial até ao republicano. Portanto, nós temos aqui séculos de construção do que é de facto o "musseque", e temos desde o musseque de ocupação espontânea até o musseque perfeitamente planeado. Fala-se do Bairro operário, será que o BO não é musseque? Claro que é, porque o conceito de musseque é o lugar de terra vermelha, o Bairro operário quando foi pensado não era para ser asfaltado, porque o lugar dos negros não é para ter asfalto. Embora as ruas fossem desenhadas e ortogonais o princípio "musseque" estava lá. Quando falo do musseque, estou a incluir não só o Bairro Operário (planificado) mas outras realidades como o Morro da Maianga (o conhecido Catambor) até a Ingombota (bairro indígena do séc. XVII-XVIII). O que o musseque tem é gente, e o que faz cidade não é somente o cenário, são as pessoas quando vivenciam. Se eu tiver um projecto todo bonitinho e não tiver lá gente "aquilo" não será lugar, não será cidade.

"É de uma arrogância tremenda os arquitectos pensarem que eles são os autores da cidade"

Musseque em Luanda(fonte: Google)

O antropólogo Patrício Batsikama fala do musseque físico, social e mental, fala até de musseque nas edificações verticais…
Ele anda apaixonado também com a ideia dos musseques. Acho que o que o Batsikama está a fazer é começar a pegar neste assunto, que começa em termos de arquitectura ligado à forma do espaço, mas neste momento, musseque é um conceito que ainda ninguém consegue definir… Aliás, o significado de musseque alastrou-se a tudo que é negativo, quer seja do ponto de vista físico ou mental. Vamos ver se reunimos pensadores para tentar criar um ponto de partida.
Há pessoas que defendem a ideia de que algum musseque deve ser demolido, o que acha?
Bem, existem alguns lugares que…, meu Deus, aí já não é possível habitar. Serão Musseques? E se forem, de que tipo são? Existe um estudo da Development Workshop que faz uma categorização muito interessante dos Musseques em Luanda. O CEICA, está a elaborar conceitos e ferramentas de análise da ocupação espontânea. Precisamos de saber separar o trigo do joio porque nem tudo que está degradado é musseque. Como diria o Paulo Flores; "Nem todo o resto é sobra". Por essa razão, sou contra a demolição de alguns lugares da cidade. Eu estou a falar daqueles espaços que começam a ser originalmente, ainda na época colonial, espaços de estratificação, porque na era colonial havia espaço para os brancos e espaço para os negros. E esta herança dos espaços da cidade que começa com o Bairro Operário, Golfe, Marçal, Rangel, Catambor, Prenda etc, são lugares da cidade que do meu ponto de vista têm direito de existir pela diferença. A ideia da defesa do musseque tem a ver com necessidade de se encontrar na abordagem da cidade o respeito pela diferença. Há espaços na cidade de Luanda que não têm que ser alienados, podem ser optimizados. Quando se vai à Lisboa, vai andar pelo Bairro da Alfama e vai abrir os braços e tocar nas paredes das casas, de tão estreitas que são aquelas ruas. Se for à Veneza ou Sevilha (onde eu vivi), se for a qualquer cidade parecida, a apropriação do espaço do espaço feita pelo homem nunca é feita em linha recta, esta (a linha recta) é a ditadura do modernismo, o que vemos nos musseques em Luanda é tão legítimo em termos de apropriação de espaço como nós vemos em todo mundo. E é este livro dos anos 60 de Rudosfky que nos ensina que há arquitectura sem arquitectos;

    Unidade de vizinhança do Prenda
 
Na série de conversas que fomos fazendo introduziu-se sempre este elemento, aliás quando falamos com o Arqº. Victor Leonel, analisamos o facto de Angola com 24 milhões de habitantes ter apenas 800 arquitectos inscritos, verifica-se que quem projecta e constrói a maior parte das edificações não são arquitectos. Que comentário quer fazer sobre o fenómeno que se pode chamar "arquitectura sem arquitectos" no nosso contexto?
O comentário que posso fazer é que essa "Arquitectura sem arquitectos" (a que prevalece na ocupação espontânea nas cidades), é tão legítima quanto a arquitectura erudita, academicista. Mais ainda, é a mais antiga…
Tem valor?
 
Claro que tem que ter valor, é aquilo que o homem constrói. Agora, nós enquanto arquitectos temos é que ter capacidade suficiente para intervir nestes espaços e melhorar a qualidade de vida das pessoas. É aqui que começa o desafio. Nós temos que ter não só a capacidade preparar um atleta de alta competição, como a de tratar de um doente. Não se pode julgar que o formato da Avenida António Barroso com o seu traçado Modernista seja mais legítimo que a forma do Catambor. Que arquitecto é capaz de lá entrar (Catambor), com a sua forma irregular/orgânica e reabilita-lo? Cidades como Sevilha, Lisboa, Veneza e tantas outras, fizeram intervenções para optimizar as suas áreas mais antigas (também de ocupação espontânea) sem recorrer a processos de demolição desenfreada. São exemplos tão bem conseguidos que até já atingiram categorias de património mundial da humanidade. Resumindo, importa anular a noção de que a única abordagem que o arquitecto faz é a da "tabula rasa" e meia dúzia de quadradinhos para edificar o que é até chamarem-nos de incompetentes.
Como secretária da DOCOMOMO ANGOLA (Comité de Documentação e Conservação do património Arquitectónico do Movimento Moderno), gostaríamos que nos informasse, depois daquela apresentação formal o ano passado no Hotel Epic Sana, como estamos?
O Plano de actividades foi feito para o biénio 2014-2016. Em 2014 conseguimos estruturar e sermos reconhecidos em Seul o que foi o topo. Para o ano de 2015 estão previstas três eixos. O eixo administrativo com o espaço DOCOMOMO, formalizar os membros que se inscreveram para apoiar a candidatura, entrar na fase administrativa para toda estrutura DOCOMOMO pós candidatura e a constituição da associação. O eixo da investigação com as parcerias com as Universidades que têm cursos de arquitectura, vamos estar a fazer programas de investigação científica sobre arquitectura moderna ao longo do País. O eixo da divulgação em parceria com a Campanha Reviver que já tem um sistema implementado desde 2009, e com quem o DOCOMOMO está a prever a criação de tours guiados pela cidade sobre os edifícios da arquitectura moderna;
E já estão a olhar para além do centro e ver o que tem a periferia em termos de arquitectura moderna?
 
Claro que temos que sair do centro. Existem muitas intervenções modernistas que estão na periferia da cidade que hoje já não é periferia. Por exemplo, a Unidade de Vizinhança do Prenda na altura da independência era periferia, hoje é parte da cidade;
 
Porquê que não temos bibliografia produzida por arquitectos angolanos?
 
Eu acredito que não haja mercado, porque o arquitecto é absorvido pelo mercado da construção e da imobiliária. O mercado da arquitectura é muito pequeno, é um mercado académico que não tem muito espaço. Bom, nós enquanto escola estamos a produzir fontes primárias de informação, mas estamos a falar de monografias específicas, objectos de estudo, portanto ao fim de dez anos, agora estamos em condições de publicar, No entanto, aquilo de que estamos a falar é da análise crítica da arquitectura, que é a opinião do arquitecto. O arquitecto por norma é mais cronista, ensaísta e candidata-se a revistas de arquitectura. Nós por exemplo, não temos uma revista de arquitectura ou de cultura arquitectónica, tudo isso acho que tem a ver com o interesse directo do arquitecto. Eu pessoalmente não me revejo nisso porque escrevo muito e as minhas publicações são normalmente colectivas e de seminários ou outros sistema de trabalho internacionais. Tenho artigos científicos publicados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, Academia Internacional das Escolas de Arquitectura de Língua Portuguesa, Bienal Internacional de Arquitectura de São Paulo, sem contar com Ensaios para revistas e jornais da especialidade e não só. Estou a fazer uma recolha desse material para publicar porque acho que seria interessante. Para além disso, quero ver se publico o meu mestrado e doutoramento.
Como avalia o perfil intelectual do arquitecto Angolano no geral. Há quem considere o arquitecto angolano o intelectual menos dotado, acha que os nossos arquitectos são cultos, gostam de estudo e investigação?
Os arquitectos com os quais lido somos nós. Eu acho que isto tem a ver não necessariamente com as pessoas mas com aquilo que a sociedade nos transforma. O arquitecto é um servidor público. O arquitecto em Angola de uma maneira geral não é um criador, não é estimulado a ser assim. Imagine se tivessem feito um concurso de ideias para um novo edifício da assembleia nacional, eu estou a imaginar uma exposição com o projecto da Ângela, do Gameiro, do Crisóstomo…vamos trabalhar, fazer coisas e há um mercado que nos absorve. Quando se diz que "o arquitecto é o intelectual muito pobre" eu entendo porque o arquitecto tem que ser um personagem de cultura, então até toda a literatura em volta da arte designa o arquitecto como primeiro artista, porque ele mexe com aquilo que é necessidade básica do homem, então nós enquanto autores, enquanto criadores temos que estar ao nível de um músico, de um escritor. Agora vamos ver que outros artistas nós temos em Angola, temos escritores, músicos, pintores, temos uma nata de criadores aqui, alguns mais ou menos interessantes, mas temos uma expressão forte nos nossos criadores. No arquitecto, somos funcionários públicos, e o grande objectivo do arquitecto é fiscalizar obras porque é o mercado que o absorve.
Lembro-me numa palestra que proferiu na união dos escritores, maka à quarta-feira, dizia que não estava nesta coisa "mundana"(a palavra forte é sua) do mercado da imobiliária. Quando disse que fugiu disso a que se referia especificamente?
Confrontei-me no mercado imobiliário com uma história que num projecto pediu-se para eu colocar mais pisos no edifício, havia condicionantes do plano de massas mas o cliente dizia que "se tirares uns centímetro por piso se calhar consegues ter mais um". Quando vou falar com o director do Gabinete em que trabalhava ele diz-me " vê lá o projecto se dá…". Quando eu me apercebi, num diálogo com os colegas, que havia questões de princípios fundamentais que não existiam e eram vistos como banais, aí virei-me para a academia, comecei ainda a fazer projectos mas chegou uma altura que a academia exigia muito de mim. Eu tive que parar, aliás nos últimos 3 anos, eu não faço projecto por causa das questões relacionadas com o doutoramento, mas agora vou voltar;
    Ângela Mingas numa palestra na Maka à quarta-feira(Fonte: acrimar.co.ao)
Com que arquitectos é que se identifica? Falemos de nomes;
Até com Corbusier (..risos..), embora eu o acho um ditador. Brincadeiras à parte, eu gosto principalmente de arquitectos que são verdadeiramente diferentes. Tenho uma verdadeira sedução pelo trabalho de Francis Keré, ainda dentro dos africanos tenho admiração de Luyanda Mpahlwa , o Joe Addo, David Adjaye e Issa Diabaté. Estes arquitectos são aqueles que fazem parte de uma linha de sedução que eu quero perceber, pela forma brilhante como têm usado a semiótica africana para a sua arquitectura e isto para mim é do tipo "Uau! Afinal também pode-se fazer" ;







 





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Escola do ensino secundário em Gando( Burkina Faso) por Francis Kéré

Os arquitectos ocidentais…
Dos arquitectos ocidentais, principalmente aqueles que eu já estudei, eu não me deixo seduzir muito por esta vertente, gosto ir muito atrás do arquitecto pela vertente social, e há um arquitecto que é fundamentalmente um investigador, um nome que poucos conhecem, Hubert Guillaud. Este homem fundou há 30 anos o Centre de Recherche de Architecture de Terre – CRATerre sob a chancela da ENSAG em Grenoble, França. A obra dele ao pormenor é brilhante, porque tem a ver com arquitectura de terra, tem a ver com a revitalização daquilo que não é cidade, que é rural mas também é humano, é espaço de gente, então esta perspectiva social do arquitecto, este valor intervencionista da qualidade de vida do homem é o que me apaixona. Com muito orgulho digo que o CEICA trabalham em parceria com a CRAterre desde 2009.
 
Falando desta sua ideia da arquitecta no feminino, vem-me a mente o facto de que algumas vezes olha-se para a mulher enquanto arquitecta, espera-se que ela se encante com o glamour ou pela exuberância da forma, mas não sinto isso em si…pensei que  gostasse muito da obra de Zaha Hadid por exemplo…
Também gosto de Zaha Hadid, é uma grande arquitecta, mas acho que do ponto de vista estético não é uma coisa que me chame muito, já lhe disse, eu deixo-me seduzir mais pela obra de Issa Diabaté, de Luyanda Mpahlwa, portanto o apelo estético vai mais para este lado do que pelo outro. Mas eu tenho que ter muito respeito por Siza Vieira e todos os grandes nomes da arquitectura mundial, é preciso tirar o chapéu a eles, mas não é por aí.
Eu por exemplo, dentro de Angola, acho extraordinária/fantástica a obra de Vieira da Costa, mas tenho mais apego pelo Castro Rodrigues, gosto mais dele porque do ponto de vista da textura, da composição eu gosto mais, não sei porquê, talvez pela escala;

    Arquitecto Sul Africano, Luyanda Mpahlwa e sua obra de intervenção social
   
A forma da arquitectura é muito importante para si?
A forma para mim não deve ser um mero exercício estético. Ela (a forma) tem que ser consequência, tem que ser uma afirmação por outros valores, senão é um manifesto da arrogância. Portanto a forma da arquitectura é consequência daquilo que ela representa quer como objecto estético quer seja como objecto funcional… se assim não for, serão apenas andaimes com peles de vidro…

"A forma para mim não deve ser um mero exercício estético"
Há quem fale de uma arquitectura mais comercial, contemporânea que se faz em qualquer centro urbano do mundo, com panos de vidro. Qual é a sua opinião sobre o equilíbrio com a nossa realidade tendo em atenção as nossa especificidade climática?
Para mim arquitectura tem que estar adaptada ao local, se isso não acontece, então não é boa arquitectura é um fenómeno de construção. A partir do momento em que o arquitecto não utiliza o desenvolvimento tecnológico de forma a criar uma arquitectura sustentável ele não está a ser socialmente responsável. Não é porque se pode passar férias na lua, ou construir um igloo na Ilha de Luanda que o mesmo tenha que acontecer. É preciso ter consciência.