segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

CONVERSA COM ÂNGELA MINGAS



"O NOSSO ENSINO DA ARQUITECTURA É NEOCOLONIAL"

Por: C. Martinho
 
  
    Ângela Mingas(fonte: Google/redeangola.info)

Bastante franca e objectiva como sempre, nesta primeira parte da conversa interessante que mantivemos, a nossa interlocutora discorre sobre temas que dizem respeito à produção e estilos arquitetónicos, o património e o ensino da arquitectura em Angola que considera "neocolonial" e expõe os seus argumentos de razão;

A arquitecta Ângela Mingas é licenciada pela Universidade Técnica de Lisboa desde 1998. Mestre em Arquitectura sobre o "Centro Histórico de Luanda" pela Universidade Lusíada do Porto, docente/coordenadora do curso de arquitectura da Universidade Lusíada de Angola e Directora do Centro de Estudos e Investigação Científica de Arquitectura, e nesta entrevista debruça-se sobre o décimo Fórum de arquitetura que a ULA realizará este ano cujo tema central é " O Estado da Arte".
 
Qual é o quadro actual sobre a preservação do património edificado em Angola?
Nós temos no País o Património distribuído de forma desequilibrada. Temos duas Províncias que representam com mais expressão o património que está classificado, estamos a falar de Luanda e Benguela com 42% e 15%, respectivamente. Depois temos algumas (províncias) que praticamente não têm património classificado, ou seja, "Monumentos" que é como os edifícios devem ser designados quando classificados e tombados, ou então o "Sítio", quando estamos a falar de lugares. Então, se formos pela linha legislativa, do que é que formalmente está classificado como "Monumento" e/ou "Sítio", sem sombra de dúvidas que Luanda, pela sua condição centenária, tem uma arquitectura, do ponto de vista histórico, mais representativa. Luanda abarca cerca de metade do património edificado do País, sendo a província menor em termos de superfíciePortanto, a preservação do património numa província que só tenha um ou dois edifícios classificados é tranquila, mas quando estamos numa cidade como é Luanda, onde existem acima de uma centena de edifícios classificados, sendo que 80 deles estão aqui na zona baixa da cidade, aí a situação é mais difícil;
 
Mas o conceito de património não se resume ao que é classificado, pois não? 
Claro que não! O fenómeno psico-sociológico de apropriação do objecto é o que, em primeira instância, atribui essa categoria ao edifício. A "classificação" é um acto administrativo e que tem como finalidade conferir prerrogativas especiais ao objecto. Mas, voltando à questão da preservação, se estivermos a falar de património classificado, portanto, dos Monumentos Sítios, e se nos ativermos à cidade de Luanda (que é a cidade-laboratório, a mais expressiva de Angola, quer queiramos ou não) vamos encontrar uma realidade dual. Por um lado nós temos património de escala maior e este é preservado, até porque é motivo de orgulho da sociedade Angolana. Estou a falar do caso da Fortaleza de São Miguel, do Banco Nacional de Angola, do Liceu Muto Ya Kevela, e de tantos outros edifícios que conhecemos e reconhecemos como edifícios públicos (Museus, Ministérios, Sedes Governamentais ou Palácios)Por outro lado, quando falamos de património de escala menor, que é aquele que constrói a paisagem histórica consequentemente a estabilidade da estrutura urbana, podemos sim falar em risco e em situação de emergência. Refiro-me especificamente a quatro tipologias que têm vindo a ser muito agredidas nos últimos dez anos, falo dos Sobrados, das Casas Típicas, dos Chalés e das Casas Nobres;
 
 Foto: Ernesto Samaria 

O quê que se pode fazer para preservar este património menor, que está relacionado com pequenos edifícios com valor patrimonial mas que não são públicos?
Existem vários braços de acção, mas julgo que o primeiro deles passa pelo conhecimento, sensibilização da população/comunidade, mas não só, acima de tudo, por políticas de fomento cultural. Considerando que neste momento temos o nosso País com a acção governamental virado para o desenvolvimento macroeconómico industriale que esse foco não mira o campo cultural, significa portanto que cultura em Angola não representa dinheiro. Estes níveis de desenvolvimento ou de entendimento social do que gera ou não riqueza são diversos e devem ser vistos por estágios da agricultura, indústria, serviços até à cultura (hoje em dia há países no mundo em que a fonte de riqueza é a cultura). Então, quando nós temos um Monumento como um Sobrado, ou uma Casa Típica, perguntamo-nos: como é que este edifício vai ser reintegrado na cidade? Porque o pensamento tem a ver com a requalificação e a reintegração. A resposta é que a cidade deve adaptar-se à sua condição e os edifícios destas tipologias têm o seu papel nessa adaptação, são intersticiais, resolvem a escala humana tão necessária para as actividades lúdico-culturais urbanasou seja, a cultura como solução;
 
 
Como acha que estamos em termos de aceitação da arquitectura, pela sociedade, enquanto disciplina, enquanto arte? Acha que à semelhança da música, literatura, pintura e outras artes, a arquitectura tem o espaço que devia na sociedade angolana?
Ainda não, porque nós não temos este mercado criado. Temos o mercado da construção, da imobiliária que são brutais e que absorvem o arquitecto. Mas o mercado da arquitectura que tem a ver com o pensamento crítico sobre a obra construída, aonde nós temos o arquitecto como autor/criador e como homem de cultura, esse mercado não tem expressão. Falta-nos a crítica como processo de valorização da obra, falta-nos a Arquitectura como Objecto Artístico e sobretudo falta-nos a intelectualidade necessária (entre nós) para ver a arquitectura para além de um fenómeno de mera construção, mas sim como um marco vivencial e por isso mesmo significante. Como se não bastasse, a Obra (Artística) de Arquitectura é muito cara, nada comparado à Obra da Música, Literatura, etc… Se pudéssemos construir com a mesma facilidade (recurso financeiro) com que se publica um livro ou disco seria muito bom. Enfim, é complexo…
 
Angola viveu momentos áureos de grande produção arquitectónica, nos anos 50/60 e hoje quando se estudam edifícios em Angola fala-se sempre das obras de Vasco Vieira da Costa, Castro Rodrigues e outros. Como é que avalia a produção arquitectónica no período pós-independência? 
Muito mal. Primeiro porque eu não conheço o perfil intervencionista. Quando se fala dos anos 50/60 estamos a falar de um fenómeno massivo de urbanização em Angola nas colónias Portuguesas de então, sustentada pela Tratadística do Gabinete de Urbanização Colonial - GUC (1948) e este fenómeno arquitectónico quando surge vem com linhas de intervenção previamente definidas por arquitectos, sabemos o que eles pensavam, o que tinham como perspectiva do futuro, assim como podemos ler e compreender o pensamento de Kubitshek traduzido em Lúcio Costa e em Niemeyer. Falando do caso de Angola pergunto-me: qual é o perfil? E se existe, partiu de Arquitectos? Se sim, quem são? O que vejo são sempre encolher de ombros. Posto isso, o que conheço são as linhas de desenvolvimento estratégico-político, que por serem extraordinárias são dignas de palmas. Gosto de termos tido a ousadia de querer construir, do positivismo do "mãos-à-obra", da ideia reconstrução e apetrechamento do País. Não sei se gosto tanto do fenómeno "Centralidades" pela fragilidade do seu significado quer urbano, quer administrativo e questiono metodologicamente a ideia do planeamento por não ser inclusivo do ponto de vista do pensamento crítico da academia e em alguns casos da sociedade civil. Resumindo, não consigo encontrar uma âncora sustentável do pensamento crítico da arquitectura nem tão pouco a marca da obra dos angolanos contemporâneos neste processo.
 
Estamos a falar de carência….
Ausência mesmo, não conheço este pensamento, conheço sim investimento de bilhões e bilhões de dólares, à volta da construção, mas a construção pressupõe projecto, projecto pressupõe arquitectura, arquitectura pressupõe pensamento, é esta primeira peça do dominó que eu não conheço;
 
Nas escolas de arquitectura estudam-se muitos edifícios projectados nos anos 50/60. Será que estudam-se também edifícios do período pós-independência? 
Sim. Um deles é o novo Edifício da Assembleia Nacional, estamos a falar de equipamento colectivo. Ao nível da habitação fazemos o estudo das centralidades, porque quando falamos da disciplina da arquitectura ou é habitação ou equipamento. Na habitação existem várias tipologias mas é muito difícil chegar ao arquitecto propriamente, na maior parte dos casos os projectos vêm de fora, geralmente o arquitecto nem vive cá. Se nós quisermos estudar um condomínio procuramos saber quem é o projectista dizem-nos que é o Gabinete tal, "quem é o arquitecto que desenhou? Não vive cá" então fica difícil; 
 
O movimento moderno marcou profundamente a arquitectura. A arquitecta Maria João diz que "não aconteceu mais nada de extraordinário depois do modernismo"; Mas a questão que se coloca frequentemente é que estilo arquitectónico está a ser feito nos nossos dias, modernismo, pós-modernismo, contemporâneo? Qual é a sua opinião?
Modernismo claramente não é, pós-modernismo também não, eu acho que a esta altura do campeonato… (…risos..), a João se estivesse aqui já dava numa boa discussão, porque modernismo, de facto, surge até acompanhado de novas tecnologias absolutamente extraordinárias, quer dizer, a invenção  do betão armado no final do século XIX é que cria espaço para a arquitectura moderna, mas ela entra em crise nos anos 60, com toda crítica que fazem arquitectos de referência como Aldo Rossi, Robert Venturi, Vittorio Gregotti, Bernard Rudovsky, até ao regionalismo critico de Siza Vieira, todos estes são pensadores e maneiras de começar a questionar o modernismo;
 
Então, o modernismo está vivo, morto ou em desmaio
Eu nem sei, porque hoje em dia sinto que, do ponto de vista tecnológico a arquitectura já não responde necessariamente aos princípios funcionalistas do modernismo, mas ela não se afirmou através de uma acção impositiva e definitiva.
 
E aquilo que chamava de "irmão de Cristo do modernismo" que é o pós-modernismo, e numa palestra dizia que não sabia se já chorávamos esse "morto", se o "komba" já foi….
Pois, nós estamos a chorar este "quase" morto, como se fosse o velho acamado. É óbvio que o modernismo é a grande referência estética da arquitectura principalmente Europeia (que se expandiu para todo o mundo com a colonização) e o pós-modernismo também, porque quando vemos um modernismo de austeridade, a sistematização, o funcionalismo, o racionalismo, uma série de princípios estico-formais, "less is more", tudo isto se estrutura quando existe uma crítica feita pelo pós-modernismo, quando temos um homem (Robert Venturi) que contraria Mies Van Der Rohe, dizendo não é "less is more"(menos é mais) é " "Less is bore"(menos é aborrecido/monótono), isto é um modernista a questionar o modernismo, é uma luta dos filhos com pais, há aqui uma crise, o pós-modernismo para mim é a crise do modernismo;
 
Nas suas comunicações fala com alguma frequência de Le Corbusier, que acabou influenciando, se calhar até determinando o curso da arquitectura que se fez no século XX e até algumas coisas que se fazem hoje. Qual é a sua apreciação sobre a obra de Le Corbusier enquanto arquitecto, artista e pensador?
Eu tenho fascínio pela coragem de Corbusier, porque não é fácil em 1923 escrever o livro como ele escreveu "Vers une architecture" aonde ele de facto, com coragem, abre as portas para uma nova maneira de pensar arquitectura, embora à distância nós o possamos ver como um radical, muitos de nós até acredita que ele tenha sido um arquitecto ditatorial, na sua maneira de ver, mas naquela altura foi necessário para partir um determinado conformismo. Mas quando Corbusier escreve "versune architecturefoi há 92 anos, então nós temos que saber beber de Corbusier, temos de saber "destilar" Corbusier, quer dizer, pegar em Corbusier com tudo aquilo que ele fez que é útil e "destilar", e é o que tem vindo a ser feito até com a crítica ao próprio modernismo. Então, Corbusier brilhante sem qualquer sombra de dúvidas, corajoso, ditador absolutamente (..risos..) e inovador também, mas absolutamente necessário. Mais ainda, Corbusier influenciou dois dos maiores pensadores da arquitectura em Angola: Simões Lopes de Carvalho e Vasco Vieira da Costa. Estes dois homens foram "criados" nas escolas de Corbusier, no atelier dele;

   Edifício para servidores do Estado-Luanda, projectado por Vasco Vieira da Costa

Enquanto docente e arquitecta, como avalia a qualidade do ensino da arquitectura em Angola? Como encara os conteúdos curriculares, acha que o que ensinamos e produzimos é o que o mercado e a sociedade precisam?
O nosso ensino da arquitectura é neocolonial. Vou ter que explicar bem a minha resposta: digo istporque quinze anos depois de começar a trabalhar nesta área específica da formação do arquitecto (e a escola de arquitectura da Universidade Lusíada é responsável por cerca de uma centena de profissionais que está no mercado) chego á conclusão que as nossas ferramentas de trabalho não correspondem a aquilo que eu acredito ser o perfil do arquitecto angolano/africano. Porquê? Porque nós temos por herança uma formação de arquitectura eurocêntrica, não conhecemos a nossa realidade do ponto de vista cultural e filosófica, e aí por consequência tudo aquilo que nós aprendemos e a nossa acção imediata sobre as coisas não corresponde a aquilo que, primeiro deveria ser o nosso perfil de intervenção, e segundo aquilo que deve ser a maneira que vermos a arquitectura
Bom, um dos exemplos que posso dar aconteceu recentemente na TPA, sobre o impacto da intervenção do Gabinete de Reconversão do Rangel, Cazenga e Sambizanga - GTRCSem que no decorrer da conversa, o colega Bento Soito disse que para além da reconversão física do espaço seria necessário fazer a reconversão mental do cidadão para que o mesmo pudesse utilizar melhor o produto que iria ser colocado à sua disposição no futuro pelo Executivo. A ideia passava pela necessidade de elevação ou conferir dignidade, à população do Cazenga através de novas tipologias arquitectónicas e melhoria do espaço público. Bom, eu parto do princípio que a dignidade não é um título, logo não se o outorga, menos ainda pela via de um objecto inadaptado. Tive que me manifestar contra, por uma razão muito simples: a reconversão mental de um cidadão, para que ele possa absorver arquitectura, isto quer dizer à partida, que nós estamos a dar ao cidadão uma arquitectura que não conhece, que formalmente ele não reconhece como um espaço;
 
Mas isto também tem a ver com o elevar da qualidade de vida das pessoas…
É aqui onde entra a estória do neocolonial. Embora possamos partir do princípio de que somos todos iguais, facto é que antropologicamente falando, as sociedades têm maneiras de ver as coisas completamente diferentes. Vejamos a alimentação: uns comem com as mãos, outros com garfos e outros tantos com palitos e nenhum tem mais dignidade que o outro. Não posso reconverter o asiático para passar a comer com garfo, é aqui onde entra o neocolonial. Eu preciso conhecer a população para a qual vou desenhar/fazer arquitectura para não correr o risco de dar ao cidadão de qualquer País uma realidade arquitectónica que lhe vai fazer mudar o seu comportamento e ver-se a si mesmo como estando errado de princípio. Por exemplo, estive em Singapura (uma cidade/estado das mais desenvolvidas do mundo e que em quase todos os parâmetros da qualidade de vida está nos 10 primeiros), num shopping center de altíssima qualidade ao dirigir-me às instalações sanitárias deparei-me com o facto de que as cabines tinham maioritariamente latrinas ao invés de sanitas. No entanto, em Paris, nem latrinas utilizam. Isto faz-nos reflectir sobre se o problema é de qualidade ou de mentalidade.
 
Quando fala em latrinas refere-se à chamada "pia turca"?
Exactamente, mas de altíssima qualidade, com descarga sifão e tudo, mas é uma latrina. Eu não fui educada a usar latrina, mas se nós fizermos contas quantas pessoas em Angola utilizam uma latrina? Verificamos que é um número considerável, talvez a maioria; 

Então, isto quer dizer o quê?
Quando ensino os meus alunos arquitectura porquê que não os instruo a projectar uma instalação sanitária que também contemple a latrina? Porquê é que temos essa vergonha intrínseca do que somos? Os processos de afirmação da identidade devem ser tranquilos, o que vejo é no íntimo considerarmos todos que o que é dos outros é melhor e não o inverso. 
 
O quê que falta e quem tem que orientar isso, Ângela, para que se faça esta mudança?
São os professores e os estudantes. Mas, os currículos dependem também do Ministério do Ensino Superior e a partir do momento que utilizo bibliografia que não comporta estes valores não posso mudar muito e fica difícil. Mas há sempre como contornar isso;

Esta ideia do ensino neocolonial da arquitectura nos dias de hoje parece bastante forte, não acha?
A ideia do neocolonial justifica-se porque nós não podemos querer afirmar princípios culturais nossos através dos actos dos outros. Quando eu falo de historia de arte porquê que só falo da antiguidade greco-romana? 
 
Pedro Neto propunha uma cadeira de história da arquitectura de Angola…
Não é história da arquitectura de Angola, porque a historia de arquitectura tem Angola também, assim como China. Os alunos do primeiro ano ficam encantados com as aulas de história de arte, nós estudamos também a Europa como é óbvio, mas temos que dar também a Asia. Como é que eu estudo história da arte/arquitectura e não conheço nada dos Incas? Pois o eurocentrismo é neocolonial, é só por causa disso;  

Acha que temos necessidade de separar a arquitectura do urbanismo no ensino, como acontece em alguns países da Europa?
Eu sempre pensei no urbanismo como uma especialidade ou consequência da arquitectura, eu não imagino o urbanismo sem passar pela arquitectura, porque a arquitectura vai conferir ao pensamento urbanístico a ideia do pormenor, do ponto de partida da parte, não se pode compreender o todo sem perceber a parte. Mais ou menos como os médicos, que o são em primeira instância de "Clínica Geral" e depois de "Especialidade" uns oftalmologistas, outros pediatras, assim por diante, mas primeiro devemos ter uma base. 

Talvez fosse pertinente lembrar as palavras de um arquitecto paisagista que num fórum dizia que "os arquitectos não percebem nada de ordenamento do território". Isto vem a propósito da formação do arquitecto que, segundo algumas vozes, não comporta um conjunto de disciplinas relacionadas com o território que levam a conclusão de que não estaria em condições de lidar com esta área complexa do saber..
Eu acho que quem faz um curso de arquitectura, estuda geografia, demografia e a própria disciplina de projecto que possui escalas de pensamento e intervenção diferentes. Agora, se um arquitecto em particular sai da escola e não percebe nada disso, é a mesma coisa dizer que o médico não estudou anatomia, não é possível; O quê que o urbanista tem na sua formação de base que o arquitecto não tenha? Não sei, aquilo que eu consultei nos curricula de urbanismo(fase de implementação da licenciatura de arquitectura na Lusíada), foi principalmente carga horária e de facto algumas disciplinas (específicas da área da gestão e política) que nós em arquitectura não temos como formação curricular…mas não acho que seja isso que justifique uma separação disciplinar que não seja consequência uma da outra.

Há muitas críticas em relação ao produto das escolas privadas de arquitectura, há quem considere que a qualidade é baixa. Acha que há motivos para preocupações sobre esta matéria?
Eu não gosto muito de generalizações mas julgo que tenha a ver com a honra de cada um. Se o princípio de acção de cada um de nós for consciente e honrado a qualidade do conjunto e do produto será sempre uma consequência naturalTudo parte das pessoas, e isto não é específico de ser uma escola privada ou pública, até porque grande parte das escolas privadas (não é o caso da ULA por força de circunstâncias) mas grande parte das privadas têm como professores docentes das escolas públicas, portanto, se eles saem da escola públicas e vão para as privadas o que está errado? O sistema ou os indivíduos?

    Ângela Mingas ao intervir no o Design Africa Symposium(foto: C. Makimba)

A Universidade Lusíada de Angola, realizou o ano passado um conjunto de actividades interessantes relacionadas com a arquitectura e urbanismo que marcaram positivamente a classe e a sociedade. O quê que teremos este ano? 
Este ano vamos estar a celebrar 10 anos de fórum de arquitectura e urbanismo. São dez anos de perseverança e continuidade, com altos e baixos, mas são dez anos. Este ano vamos fazer um fórum que terá como slogan/lema: " O estado da arte". Vamos expor e debater sobre todas as nossas linhas de estudos e investigação; os estudos da cidade de Luanda, especificamente sobre a qualidade de vida, vamos fazer uma publicação dos dois anos do workshop dos Musseques (as actas dos dois anos consecutivos), a exposição dos centros históricos de Angola da região Norte (Luanda, Muxima, Massangano, Mbanza Congo), o quê que temos em comum ou os que fazem diferentes, vendo o património não apenas na perspectiva do edifício mas do lugar urbano. Também vamos reforçar mais uma vez esta ideia (que quero cada vez mais hegemónica) do arquitecto africano, o Design Africa Symposium, trazer de novo os nossos, que foi muito bom termos tido o ano passado aqui, Joe AddoLuyanda Mpahlwa, Annette Fisher, Maria Mareallevamos reforçar toda esta linhagem de altíssimo nível que são os arquitectos africanos, e como não podia deixar de ser, arriscar uma conferência sobre "arquitectura no feminino". Resumindo e concluindo o fórum este ano vai falar sobre o estado da arte, nossa arquitectura, o que nós fazemos do ponto de vista da investigação e a ideia da africanidade, a filosofia bantu do africano, o nosso lugar no mundo, o que temos de diferente, ou semelhante e conversar cada vez mais sobre nós;

     Participantes ao Design Africa Symposium 2014/ULA(foto: C. Makimba)



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

“AQUI CONFUNDE-SE MUITO ARQUITECTURA COM INDÚSTRIA”

2ª PARTE DA CONVERSA COM O PRESIDENTE DA ORDEM DOS ARQUITECTOS DE ANGOLA- Arqº. Victor Leonel

 
Nesta ultima parte da entrevista com o Arqº. Victor Leonel, analisamos a quantidade e o papel do arquitecto numa sociedade como a nossa, com as suas especificidades culturais e socioeconómicas. O presidente da OAA entende que o arquitecto é um "City Changer" (transformador da cidade), ele mexe com a sociedade e a cidade, porém admite que boa parte das edificações nas zonas rurais e periurbanas  não são concebidas por arquitectos, mas sim pela população, sugere que haja  envolvimento da sociedade e da administração local do Estado;
  
Como estamos em termos de número de arquitectos inscritos na Ordem hoje?
Estamos em cerca de 800 arquitectos inscritos.
O número de arquitectos inscritos ainda é irrisório para o País, não acha?
Não, não. Quer dizer, para Luanda já temos arquitectos a mais. A União Internacional de Arquitectos define que o rácio aconselhável para as sociedades é de um arquitecto para dez mil pessoas. Se nós temos por volta 24 milhões de habitantes no País, significa que precisamos de cerca de 2 500 arquitectos. Nós temos 800 mas neste momento temos no País cerca de 20 escolas de arquitectura, isto para nós OAA, o sinal amarelo está a piscar em termos de número de arquitectos, porque com vinte escolas de arquitectura, se cada escola formar 10 arquitectos este ano teremos 200 arquitectos novos, daqui a cinco anos podemos passar os 2.500 arquitectos; O amarelo está a piscar porque fica perigoso, começaremos a ter arquitectos no subemprego e depois desempregados, porque este rácio é dado pensando que durante o ano uma das 10 mil pessoas vai pedir trabalho;
Mas, olhando para a nossa realidade em que, cerca de 35% da população de Angola está concentrada em Luanda, e o último anuário publicado pela OAA indica que uma esmagadora maioria de arquitectos está na Capital do País, fazendo uma análise do número de arquitectos e a população em geral que é a que constrói bastante, verifica-se um deficit….
Nós estamos a fazer este estudo agora, estamos a espera dos resultados mais concretos do censo populacional. Temos informações da população por localidade, agora vamos pôr arquitectos nestas localidades em termos de números e vamos verificar qual é a necessidade real, porque Luanda já sabemos que tem excesso de arquitectos, vamos saber como está o Bengo, Benguela, Huila. Temos que perceber que províncias têm mais arquitectos e as que têm menos. Vou dar um exemplo: se uma Cidade como Benguela tem cento e tal mil habitantes, significa que a Cidade/Município de Benguela precisaria de 10-12 arquitectos. Se o Município tiver 200 000 habitantes precisaremos de 20 arquitectos, se o Município tiver já 15 arquitectos, não é aconselhável que abra uma escola de arquitectura, vai ter excesso.
Aqui também levanta-se uma questão que é a seguinte: a nossa população é crescente e distribuída de forma desequilibrada pelo território, há muito para construir. Estes rácios não estarão muito virados para aquilo que são os paradigmas ocidentais? Se numa realidade há necessidade de 1 arquitecto para 10 000 habitantes, no nosso contexto não precisaremos um pouco mais?
Na nossa realidade precisamos menos arquitectos, porque no meio rural quem constrói é a população;
 
Mas a Lei das transgressões administrativas considera um ilícito, passível de multas altas, construir sem licenciamento pelas autoridades competentes, e o arquitecto disse bem que isto requer um projecto assinado por um arquitecto inscrito na Ordem. Se estamos conscientes de que no meio rural as pessoas constroem sem licenciamento não estaremos a admitir que as populações estão a realizar construções irregulares ou à margem da Lei?
Mais de 60% das construções no mundo não são feitas por arquitectos, não é só Angola, portanto isto não é uma novidade nossa e nós temos que ter os pés assentes na terra, porque a Lei não pode contrariar um hábito, se eu como funge tu me proíbes eu vou arranjar formas de faze-lo às escondidas, mas vou comer. Nós temos que ter muito cuidado naquilo que é proibição e o que é permissão, por isso é que existe o direito costumeiro. Então, a população vai continuar a construir no meio rural, por isso é que o urbano tem as suas regras e o rural tem as suas. Nós não podemos, no meu ponto de vista, transportar as regras urbanas para o rural, porque este tem particularidades muito próprias.
    Habitação no meio rural(Fonte: Google)
 
"Mais de 60% das construções no mundo não são feitas por arquitectos"
 
Nós estamos a falar do urbano e o rural, mas a maior parte das pessoas em Angola não mora, na minha perspectiva, no urbano convencional nem no meio rural, mas sim no periurbano ou suburbano….
 
A abordagem no periurbano é outra, o hábito do periurbano não tem nada a ver com o rural, está mais próximo do urbano….
Mas é aí na parte periurbana do território onde acontecem a maior parte das construções
Isto é outra estória, a intervenção no meio periurbano deve ser feita ou por arquitectos ou pela Administração, no caso de baixa renda, intervir fazendo as chamadas "casas sociais", ou acompanhando, não gosto muito da ideia da auto-construção dirigida, prefiro que seja acompanhada. Pode ser a Administração local a aconselhar mas também podem ser as universidades ou ONG´s, que definem as regras sobre os arruamentos, os alinhamentos, os limites dos talhões e a população constrói. Nós vamos para os nossos Kimbos cá em Angola e vemo-los todos alinhados, alguém está a aconselhar/orientar;
 
     Habitação em Zona periurbana-Zango(Fonte: Google)
Como vê o papel social do arquitecto? Hoje fala-se em arquitectura social, mais do que um projectista/artista precisamos que o arquitecto seja alguém que intervém no tecido social?
 
O arquitecto é o "City Changer" (transformador da cidade), ele mexe com a sociedade e a cidade, mexe com tudo em que está envolvida a sociedade. Do ponto de vista artístico, diz-se que o arquitecto é o artista mais completo, porque o arquitecto tem que perceber de som para que a acústica daquela sala funcione para o músico que também é outro artista, tem que deixar o museu de tal forma que as paredes possam receber os quadros, portanto em todos estes elementos o arquitecto tem que pensar, em todas as artes, pois todas elas funcionam em edifícios, espaços para esculturas e além disso, e tem que ser de certa forma interessante para a sociedade.
  "O arquitecto é o "City Changer" (transformador da cidade), ele mexe com a sociedade e a cidade"
 
Que mecanismo a Ordem idealiza para tornar o arquitecto mais acessível à população?
 
Estamos a criar uma área de solidariedade social em que os arquitectos se disponibilizam para ajudar, já pedimos que os que tivessem interessados dessem os seus contactos, de vez em quando vamos intervir, mas é preciso que a Administração do Estado esteja receptiva a isto, porque vamos intervir num território que tem população e tem Administração, tem que haver parceria;
Falemos do património arquitectónico. Foi apresentado recentemente a DOCOMOMO Angola que é um comité que visa a documentação e preservação do património arquitectónico do movimento moderno, uma iniciativa da UNESCO, qual é a visão da Ordem?
Eu tenho a sensação de que aqui, mesmo ao nível do Ministério da Cultura, a arquitectura não é vista como cultura, nem como arte, nem como manifestação cultural, lembro-me que há uns quatro ou cinco anos foi um grupo para Cuba e levou-se representantes de todas áreas da cultura menos arquitectura;
Estamos a voltar à questão do arquitecto ser visto como uma espécie de enteado no meio dos outros artistas…
Não, se estivermos a vê-lo como enteado então ele é filho de alguém. O problema é que não percebem que ele é artista, olham para o arquitecto apenas como técnico, por isso confundem-nos muito com os engenheiros. O engenheiro é de outra ciência, a nossa é das artes;
Então, isto interfere na forma como se vê o património?
Sim, por exemplo vejo muitas vezes quando se fala do nosso património edificado, de Mbanza Congo (por exemplo), e não somos chamados. Na maior parte dos Países quem trata do património são as Ordens, são os arquitectos. Como é que alguém que não entende de arquitectura vai falar de como preservar os edifícios? Quem se especializa em património são os arquitectos. Nós temos aqui muito património que está a ir à vida, uns com razão outros sem razão, nós precisamos verificar, quantificar e qualificar o que nós temos em termos de património, porque muito do património que temos aqui foi classificado no tempo colonial e se nós verificarmos os critérios que levaram à classificação de alguns monumentos, vamos ver que em muitos casos a referência é porque viveu o fulano de tal, que não nos diz mais nada hoje, nós precisamos reclassificar o património edificado;

    Património edificado de M`banza Kongo(Fonte: Google)
 

O estatuto da Ordem dos arquitectos tem 10 anos, como estamos em matéria de revisão deste diploma legal, sendo que há iniciativa do Estado para a revisão da Lei de Terra e do ordenamento do território que têm a mesma idade?
O estatuto tem 10 anos mas não está, do meu ponto de vista, obsoleto. Nós precisamos cumprir com aquilo que são as espectativas deste estatuto, isto passa por convencer muitas instituições do Estado/Governo em matéria de funcionalidade deste instrumento, com as atribuições que confere à Ordem. Vou dar um exemplo: como é que um arquitecto estrangeiro, que não pode exercer a profissão tem visto de trabalho de acordo com a Lei, algumas instituições dão vistos de trabalho. Então estas instituições antes de conceder o visto de trabalho têm que perguntar a OAA se este cidadão estrangeiro tem condições de exercer a profissão em Angola, se não poder também não pode ter visto de trabalho. Nós tivemos o caso do jogador Manucho Gonçalves, quando foi jogar para a Inglaterra, a Lei lá diz que para ter visto de trabalho o jogador tem que ter um número determinado de horas de jogo na selecção. Manucho não tinha jogos suficientes na selecção para ir trabalhar na Inglaterra, teve que cumprir o requisito depois é que obteve o visto de trabalho;
Como está o processo da regulamentação do Estatuto que começou o ano passado?
Estamos a trabalhar nos vários códigos e regulamentos porque um dos deficits que temos no País são os regulamentos. Se não nos prevenirmos amanhã vão acontecer coisas que não saberemos como resolver, mas felizmente para nós, sob o mandato do arquitecto Gameiro  logo no inicio preparamos o regulamento de inscrição, para definir quem é que pode inscrever-se na Ordem, foi uma discussão exaustiva, se não hoje teríamos não sei quantos mil arquitectos a funcionar sem qualidade. Para a Ordem, do ponto de vista de ganhos financeiro, se tivéssemos 10 mil arquitectos seria bom, mas a OAA não pode ver as coisas do ponto de vista meramente económico, a Ordem tem que proteger o arquitecto;
Como a Ordem avalia a qualidade da arquitectura que fazemos, as boas práticas da arquitectura? Que arquitectura fazemos hoje?
É o que disse, isto é um processo. A primeira escola de arquitectura aqui no País é da Universidade Agostinho Neto, o primeiro grupo saiu por volta de  1985-86, salvo erro, é essa idade da arquitectura aqui. Há arquitectos que trabalharam no tempo colonial, há arquitectos que formaram-se no tempo colonial, mas é um número ínfimo, então de 1985 para cá vamos considerar como a fase de amadurecimento de que me referia;
Outra questão é analisar o que é boa arquitectura, uma coisa muito atraente ou o que funciona bem e eleva a qualidade de vida?
Aqui confunde-se muito, arquitectura com indústria, há pessoas que gostam de replicar arquitectura, pegar num edifício e fazer 20 ou 50. Neste momento a parte sul de Luanda é uma cidade de condomínios e se formos ver quantos modelos de habitação temos no Talatona, principalmente, vamos ter dez modelos (quando muito) naquela dimensão toda, porque num condomínio todas casas são iguais, então se tiver dez condomínios tens dez modelos de casa, é ridículo isso;
O quê que falta, criatividade?
Não foram arquitectos inscritos na Ordem que fizeram aquilo. Então não são os nossos arquitectos que estão com falta de criatividade. Isto quer dizer que os arquitectos têm estado a trabalhar, mas não se deve confundir indústria com arquitectura. Arquitectura na sua essência é cultura, por isso é que estudamos antropologia, sociologia e geografia. Quando eu me referi que é preciso ir ao campo a busca do que se está a fazer é esta a essência da arquitectura, então não adianta você ter uma parede toda vidrada, se depois não vás ter conforto no interior, aparentemente pode estar interessante mas quem vive não consegue lá estar, para quê ter um pilar todo exótico se depois não sustenta o edifício? A função do pilar é sustentar o edifício se não cumpre este papel por mais curvas que tenha, não está a fazer nada. Então a beleza da arquitectura não está apenas na vista que tem, está no conforto que permite às pessoas que lá vivem;

"A beleza da arquitectura não está apenas na vista que tem, está no conforto que permite às pessoas que lá vivem"
Quando a direcção Ordem dos arquitectos pensa realizar uma assembleia com os associados para ouvir contribuições/ ideias sobre matérias que dizem respeito aos arquitectos e a arquitectura?
Estamos a preparar os regulamentos para serem aprovados e nesta altura vamos pedir contribuições aos Arquitectos para, se forem pertinentes, serem aprovadas em assembleia. Mas estamos a preparar para este ou o próximo ano
O site e as páginas da Ordem nas redes sociais não têm informação actualizada, o que falta?
A empresa que tínhamos contactado para fazer o nosso site falhou. Estamos a trabalhar com outra e penso que em dois três meses teremos o site no ar.
Como está o programa da gala de premiação e a divulgação dos vencedores dos concursos anteriores promovidos pela Ordem?
Nós temos tudo preparado para a Gala, até o troféu está pronto desde Setembro. Estamos a espera que o Governo do Kwanza Sul nos diga quando é que podemos lá ir para este evento. É uma situação que também a mim desgasta.
Um apelo aos associados e a sociedade…
 

Faço três apelos:
 
1.       Aos decisores: dêem mais trabalhos aos arquitectos nacionais, precisamos trabalhar;
2.       Os arquitectos devem estar comprometidos com a sociedade, para fazerem cada vez mais e melhor, as pessoas não devem esperar que as encomendas venham, temos que ir para o campo, temos que estudar mais, pesquisar mais, não esperar pelas instituições, há coisas que podem ser feitas individualmente, venham bater a porta da Ordem e vamos trabalhar juntos. A Ordem serve de uma espécie de agência lobista, ou relações públicas para que os arquitectos consigam trabalho, não fiquem parados achando que os especialistas são os estrangeiros, todos nós podemos ser desde que estejamos comprometidos com isso;
3.        Aos estudantes de arquitectura, é preciso que percebam, desde já, na fase de estudo que arquitectura é uma busca do que é interessante, do ponto de vista do conforto e do traço. Quando um arquitecto está a terminar o curso de arquitectura e diz que "eu sou bom" esse arquitecto é mau, porque ele não tem noção de que quando se forma, o desafio que tem não é com o João ou a Maria é com ele próprio, ele se superar, então esta capacidade de superação que ele próprio deve ter e comprometer-se com ele mesmo é que vai fazer dele um grande arquitecto no futuro;

Edição: J. M. António