quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

“AQUI CONFUNDE-SE MUITO ARQUITECTURA COM INDÚSTRIA”

2ª PARTE DA CONVERSA COM O PRESIDENTE DA ORDEM DOS ARQUITECTOS DE ANGOLA- Arqº. Victor Leonel

 
Nesta ultima parte da entrevista com o Arqº. Victor Leonel, analisamos a quantidade e o papel do arquitecto numa sociedade como a nossa, com as suas especificidades culturais e socioeconómicas. O presidente da OAA entende que o arquitecto é um "City Changer" (transformador da cidade), ele mexe com a sociedade e a cidade, porém admite que boa parte das edificações nas zonas rurais e periurbanas  não são concebidas por arquitectos, mas sim pela população, sugere que haja  envolvimento da sociedade e da administração local do Estado;
  
Como estamos em termos de número de arquitectos inscritos na Ordem hoje?
Estamos em cerca de 800 arquitectos inscritos.
O número de arquitectos inscritos ainda é irrisório para o País, não acha?
Não, não. Quer dizer, para Luanda já temos arquitectos a mais. A União Internacional de Arquitectos define que o rácio aconselhável para as sociedades é de um arquitecto para dez mil pessoas. Se nós temos por volta 24 milhões de habitantes no País, significa que precisamos de cerca de 2 500 arquitectos. Nós temos 800 mas neste momento temos no País cerca de 20 escolas de arquitectura, isto para nós OAA, o sinal amarelo está a piscar em termos de número de arquitectos, porque com vinte escolas de arquitectura, se cada escola formar 10 arquitectos este ano teremos 200 arquitectos novos, daqui a cinco anos podemos passar os 2.500 arquitectos; O amarelo está a piscar porque fica perigoso, começaremos a ter arquitectos no subemprego e depois desempregados, porque este rácio é dado pensando que durante o ano uma das 10 mil pessoas vai pedir trabalho;
Mas, olhando para a nossa realidade em que, cerca de 35% da população de Angola está concentrada em Luanda, e o último anuário publicado pela OAA indica que uma esmagadora maioria de arquitectos está na Capital do País, fazendo uma análise do número de arquitectos e a população em geral que é a que constrói bastante, verifica-se um deficit….
Nós estamos a fazer este estudo agora, estamos a espera dos resultados mais concretos do censo populacional. Temos informações da população por localidade, agora vamos pôr arquitectos nestas localidades em termos de números e vamos verificar qual é a necessidade real, porque Luanda já sabemos que tem excesso de arquitectos, vamos saber como está o Bengo, Benguela, Huila. Temos que perceber que províncias têm mais arquitectos e as que têm menos. Vou dar um exemplo: se uma Cidade como Benguela tem cento e tal mil habitantes, significa que a Cidade/Município de Benguela precisaria de 10-12 arquitectos. Se o Município tiver 200 000 habitantes precisaremos de 20 arquitectos, se o Município tiver já 15 arquitectos, não é aconselhável que abra uma escola de arquitectura, vai ter excesso.
Aqui também levanta-se uma questão que é a seguinte: a nossa população é crescente e distribuída de forma desequilibrada pelo território, há muito para construir. Estes rácios não estarão muito virados para aquilo que são os paradigmas ocidentais? Se numa realidade há necessidade de 1 arquitecto para 10 000 habitantes, no nosso contexto não precisaremos um pouco mais?
Na nossa realidade precisamos menos arquitectos, porque no meio rural quem constrói é a população;
 
Mas a Lei das transgressões administrativas considera um ilícito, passível de multas altas, construir sem licenciamento pelas autoridades competentes, e o arquitecto disse bem que isto requer um projecto assinado por um arquitecto inscrito na Ordem. Se estamos conscientes de que no meio rural as pessoas constroem sem licenciamento não estaremos a admitir que as populações estão a realizar construções irregulares ou à margem da Lei?
Mais de 60% das construções no mundo não são feitas por arquitectos, não é só Angola, portanto isto não é uma novidade nossa e nós temos que ter os pés assentes na terra, porque a Lei não pode contrariar um hábito, se eu como funge tu me proíbes eu vou arranjar formas de faze-lo às escondidas, mas vou comer. Nós temos que ter muito cuidado naquilo que é proibição e o que é permissão, por isso é que existe o direito costumeiro. Então, a população vai continuar a construir no meio rural, por isso é que o urbano tem as suas regras e o rural tem as suas. Nós não podemos, no meu ponto de vista, transportar as regras urbanas para o rural, porque este tem particularidades muito próprias.
    Habitação no meio rural(Fonte: Google)
 
"Mais de 60% das construções no mundo não são feitas por arquitectos"
 
Nós estamos a falar do urbano e o rural, mas a maior parte das pessoas em Angola não mora, na minha perspectiva, no urbano convencional nem no meio rural, mas sim no periurbano ou suburbano….
 
A abordagem no periurbano é outra, o hábito do periurbano não tem nada a ver com o rural, está mais próximo do urbano….
Mas é aí na parte periurbana do território onde acontecem a maior parte das construções
Isto é outra estória, a intervenção no meio periurbano deve ser feita ou por arquitectos ou pela Administração, no caso de baixa renda, intervir fazendo as chamadas "casas sociais", ou acompanhando, não gosto muito da ideia da auto-construção dirigida, prefiro que seja acompanhada. Pode ser a Administração local a aconselhar mas também podem ser as universidades ou ONG´s, que definem as regras sobre os arruamentos, os alinhamentos, os limites dos talhões e a população constrói. Nós vamos para os nossos Kimbos cá em Angola e vemo-los todos alinhados, alguém está a aconselhar/orientar;
 
     Habitação em Zona periurbana-Zango(Fonte: Google)
Como vê o papel social do arquitecto? Hoje fala-se em arquitectura social, mais do que um projectista/artista precisamos que o arquitecto seja alguém que intervém no tecido social?
 
O arquitecto é o "City Changer" (transformador da cidade), ele mexe com a sociedade e a cidade, mexe com tudo em que está envolvida a sociedade. Do ponto de vista artístico, diz-se que o arquitecto é o artista mais completo, porque o arquitecto tem que perceber de som para que a acústica daquela sala funcione para o músico que também é outro artista, tem que deixar o museu de tal forma que as paredes possam receber os quadros, portanto em todos estes elementos o arquitecto tem que pensar, em todas as artes, pois todas elas funcionam em edifícios, espaços para esculturas e além disso, e tem que ser de certa forma interessante para a sociedade.
  "O arquitecto é o "City Changer" (transformador da cidade), ele mexe com a sociedade e a cidade"
 
Que mecanismo a Ordem idealiza para tornar o arquitecto mais acessível à população?
 
Estamos a criar uma área de solidariedade social em que os arquitectos se disponibilizam para ajudar, já pedimos que os que tivessem interessados dessem os seus contactos, de vez em quando vamos intervir, mas é preciso que a Administração do Estado esteja receptiva a isto, porque vamos intervir num território que tem população e tem Administração, tem que haver parceria;
Falemos do património arquitectónico. Foi apresentado recentemente a DOCOMOMO Angola que é um comité que visa a documentação e preservação do património arquitectónico do movimento moderno, uma iniciativa da UNESCO, qual é a visão da Ordem?
Eu tenho a sensação de que aqui, mesmo ao nível do Ministério da Cultura, a arquitectura não é vista como cultura, nem como arte, nem como manifestação cultural, lembro-me que há uns quatro ou cinco anos foi um grupo para Cuba e levou-se representantes de todas áreas da cultura menos arquitectura;
Estamos a voltar à questão do arquitecto ser visto como uma espécie de enteado no meio dos outros artistas…
Não, se estivermos a vê-lo como enteado então ele é filho de alguém. O problema é que não percebem que ele é artista, olham para o arquitecto apenas como técnico, por isso confundem-nos muito com os engenheiros. O engenheiro é de outra ciência, a nossa é das artes;
Então, isto interfere na forma como se vê o património?
Sim, por exemplo vejo muitas vezes quando se fala do nosso património edificado, de Mbanza Congo (por exemplo), e não somos chamados. Na maior parte dos Países quem trata do património são as Ordens, são os arquitectos. Como é que alguém que não entende de arquitectura vai falar de como preservar os edifícios? Quem se especializa em património são os arquitectos. Nós temos aqui muito património que está a ir à vida, uns com razão outros sem razão, nós precisamos verificar, quantificar e qualificar o que nós temos em termos de património, porque muito do património que temos aqui foi classificado no tempo colonial e se nós verificarmos os critérios que levaram à classificação de alguns monumentos, vamos ver que em muitos casos a referência é porque viveu o fulano de tal, que não nos diz mais nada hoje, nós precisamos reclassificar o património edificado;

    Património edificado de M`banza Kongo(Fonte: Google)
 

O estatuto da Ordem dos arquitectos tem 10 anos, como estamos em matéria de revisão deste diploma legal, sendo que há iniciativa do Estado para a revisão da Lei de Terra e do ordenamento do território que têm a mesma idade?
O estatuto tem 10 anos mas não está, do meu ponto de vista, obsoleto. Nós precisamos cumprir com aquilo que são as espectativas deste estatuto, isto passa por convencer muitas instituições do Estado/Governo em matéria de funcionalidade deste instrumento, com as atribuições que confere à Ordem. Vou dar um exemplo: como é que um arquitecto estrangeiro, que não pode exercer a profissão tem visto de trabalho de acordo com a Lei, algumas instituições dão vistos de trabalho. Então estas instituições antes de conceder o visto de trabalho têm que perguntar a OAA se este cidadão estrangeiro tem condições de exercer a profissão em Angola, se não poder também não pode ter visto de trabalho. Nós tivemos o caso do jogador Manucho Gonçalves, quando foi jogar para a Inglaterra, a Lei lá diz que para ter visto de trabalho o jogador tem que ter um número determinado de horas de jogo na selecção. Manucho não tinha jogos suficientes na selecção para ir trabalhar na Inglaterra, teve que cumprir o requisito depois é que obteve o visto de trabalho;
Como está o processo da regulamentação do Estatuto que começou o ano passado?
Estamos a trabalhar nos vários códigos e regulamentos porque um dos deficits que temos no País são os regulamentos. Se não nos prevenirmos amanhã vão acontecer coisas que não saberemos como resolver, mas felizmente para nós, sob o mandato do arquitecto Gameiro  logo no inicio preparamos o regulamento de inscrição, para definir quem é que pode inscrever-se na Ordem, foi uma discussão exaustiva, se não hoje teríamos não sei quantos mil arquitectos a funcionar sem qualidade. Para a Ordem, do ponto de vista de ganhos financeiro, se tivéssemos 10 mil arquitectos seria bom, mas a OAA não pode ver as coisas do ponto de vista meramente económico, a Ordem tem que proteger o arquitecto;
Como a Ordem avalia a qualidade da arquitectura que fazemos, as boas práticas da arquitectura? Que arquitectura fazemos hoje?
É o que disse, isto é um processo. A primeira escola de arquitectura aqui no País é da Universidade Agostinho Neto, o primeiro grupo saiu por volta de  1985-86, salvo erro, é essa idade da arquitectura aqui. Há arquitectos que trabalharam no tempo colonial, há arquitectos que formaram-se no tempo colonial, mas é um número ínfimo, então de 1985 para cá vamos considerar como a fase de amadurecimento de que me referia;
Outra questão é analisar o que é boa arquitectura, uma coisa muito atraente ou o que funciona bem e eleva a qualidade de vida?
Aqui confunde-se muito, arquitectura com indústria, há pessoas que gostam de replicar arquitectura, pegar num edifício e fazer 20 ou 50. Neste momento a parte sul de Luanda é uma cidade de condomínios e se formos ver quantos modelos de habitação temos no Talatona, principalmente, vamos ter dez modelos (quando muito) naquela dimensão toda, porque num condomínio todas casas são iguais, então se tiver dez condomínios tens dez modelos de casa, é ridículo isso;
O quê que falta, criatividade?
Não foram arquitectos inscritos na Ordem que fizeram aquilo. Então não são os nossos arquitectos que estão com falta de criatividade. Isto quer dizer que os arquitectos têm estado a trabalhar, mas não se deve confundir indústria com arquitectura. Arquitectura na sua essência é cultura, por isso é que estudamos antropologia, sociologia e geografia. Quando eu me referi que é preciso ir ao campo a busca do que se está a fazer é esta a essência da arquitectura, então não adianta você ter uma parede toda vidrada, se depois não vás ter conforto no interior, aparentemente pode estar interessante mas quem vive não consegue lá estar, para quê ter um pilar todo exótico se depois não sustenta o edifício? A função do pilar é sustentar o edifício se não cumpre este papel por mais curvas que tenha, não está a fazer nada. Então a beleza da arquitectura não está apenas na vista que tem, está no conforto que permite às pessoas que lá vivem;

"A beleza da arquitectura não está apenas na vista que tem, está no conforto que permite às pessoas que lá vivem"
Quando a direcção Ordem dos arquitectos pensa realizar uma assembleia com os associados para ouvir contribuições/ ideias sobre matérias que dizem respeito aos arquitectos e a arquitectura?
Estamos a preparar os regulamentos para serem aprovados e nesta altura vamos pedir contribuições aos Arquitectos para, se forem pertinentes, serem aprovadas em assembleia. Mas estamos a preparar para este ou o próximo ano
O site e as páginas da Ordem nas redes sociais não têm informação actualizada, o que falta?
A empresa que tínhamos contactado para fazer o nosso site falhou. Estamos a trabalhar com outra e penso que em dois três meses teremos o site no ar.
Como está o programa da gala de premiação e a divulgação dos vencedores dos concursos anteriores promovidos pela Ordem?
Nós temos tudo preparado para a Gala, até o troféu está pronto desde Setembro. Estamos a espera que o Governo do Kwanza Sul nos diga quando é que podemos lá ir para este evento. É uma situação que também a mim desgasta.
Um apelo aos associados e a sociedade…
 

Faço três apelos:
 
1.       Aos decisores: dêem mais trabalhos aos arquitectos nacionais, precisamos trabalhar;
2.       Os arquitectos devem estar comprometidos com a sociedade, para fazerem cada vez mais e melhor, as pessoas não devem esperar que as encomendas venham, temos que ir para o campo, temos que estudar mais, pesquisar mais, não esperar pelas instituições, há coisas que podem ser feitas individualmente, venham bater a porta da Ordem e vamos trabalhar juntos. A Ordem serve de uma espécie de agência lobista, ou relações públicas para que os arquitectos consigam trabalho, não fiquem parados achando que os especialistas são os estrangeiros, todos nós podemos ser desde que estejamos comprometidos com isso;
3.        Aos estudantes de arquitectura, é preciso que percebam, desde já, na fase de estudo que arquitectura é uma busca do que é interessante, do ponto de vista do conforto e do traço. Quando um arquitecto está a terminar o curso de arquitectura e diz que "eu sou bom" esse arquitecto é mau, porque ele não tem noção de que quando se forma, o desafio que tem não é com o João ou a Maria é com ele próprio, ele se superar, então esta capacidade de superação que ele próprio deve ter e comprometer-se com ele mesmo é que vai fazer dele um grande arquitecto no futuro;

Edição: J. M. António
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   
 

1 comentário:

  1. Estava mais do que na hora de ouvirmos o Bastonário da Ordem, que aproveitamos elogiar a equipa pelos feitos que têm conseguido em prol da comunidade dos Arquitectos de Angola. Estamos cientes que ainda não é fácil no país em que vivemos em função da burocracia que vigora conseguir obter resultados positivos. Ainda não se conseguiu tudo, mas temos sentido e nos beneficiado do que já foi feito e aproveitamos encorajar a Ordem a continuar com o bom trabalho que tem feito, até conseguirmos alcançar o que a comunidade almeja: Autonomia, oportunidade para mostrar que também podemos e a uniformização nos métodos de exercer Arquitectura em Angola e África.

    Foi interessante a abordagem do Arquitecto em relação ao número de Arquitectos inscritos na Ordem, interessante este facto de a UIA definir 1Arq /10.000hab. Compreensível também a preocupação de que nos próximos anos, em função das escolas de Arquitectura que têm surgido, provavelmente passemos o rácio ´aconselhável´...mas temos o exemplo de Portugal, que em termo territorial e populacional é muito reduzido em relação Angola, mas segundo última consulta feita já no princípio de 2014 estavam cerca de 25.000 arquitectos inscritos na Ordem de Portugal (dados passíveis de correção), acredito e concordo que há muito trabalho para ser feito e se for cumprido a rigor o regulamento de que só os arquitectos inscritos na Ordem devem exercer a profissão, ajudaria bastante.
    Quanto a afirmação de que "Nas zonas rurais quem constrói é a população" é mais do que verdade! Mas estes podem construir com orientação. Não necessariamente regulamentar mas adaptar as regras rurais de acordo aos seus costumes e ACOMPANHAR...por exemplo, eles constroem as suas casas, mas necessitam também de escolas, hospitais...etc, ai entra o acompanhamento dos profissionais competentes para o sucesso dos mesmos; um exemplo claro disso é o Arquitecto FRANCIS KERE, voltado para as construções rurais adaptando os materiais locais, acredito que em Angola também pode-se projectar em zona rural independentemente do povoado exercer a sua arquitectura, porque se for projectado uma arquitectura em que eles se IDENTIFIQUEM será mais fácil adaptarem-se e deixarem-se moldar pela inovação.

    O Arquitecto é "City Changer" de facto o é. Isso faz-me lembrar uma frase que nosso Ilustre Mestre (Arqtº Filipe Vieira Lopes) disse-nos: "O Arquitecto não deve saber de tudo um pouco, o Arquitecto deve saber de tudo muito".
    Quanto aos regulamentos, a Ordem estatuiu que só os arquitectos devem assinar os projectos para o licenciamento...mas ouve-se por parte de muitos técnicos que em muitas repartições não cumprem o que está regulamentado.

    Sugestões (?)
    - Desconheço o que está sendo feito quanto a isso (provavelmente já existe), mas em minha opinião as administrações locais deviam ter regulamentado e afixar em todas as repartições competentes para o licenciamento de projectos as peças que devem acompanhar cada fase do projecto, pois ainda se verifica alguma confusão e dúvida até mesmo por parte dos técnicos, e esse regulamento devia sair da Ordem como regulamento a vigorar.
    ...

    Bem haja

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